A crise da Ford: fragilidade da estrutura produtiva e a crise do mercado interno brasileiro

A crise da Ford: fragilidade da estrutura produtiva e a crise do mercado interno brasileiro

Por Uallace Moreira – Professor da Faculdade de Economia/UFBA

Um dos principais setores que têm passado por transformações com a internacionalização da produção é a indústria automobilística. Do ponto de vista geográfico, a indústria automotiva mundial passou por transformações relevantes. Desde meados da década de 1980, há um processo de transição de indústrias nacionais localizadas em um número limitado de países para uma indústria global mais integrada. Fatores como saturação do mercado, altos níveis de motorização e pressões políticas sobre montadoras para produzir onde se vendem têm incentivado a dispersão da montagem final, fazendo com que a produção aconteça em muitos mais lugares do que há trinta anos.

No período recente, um fato relevante a ser levado em consideração é que essas transformações e expansão da cadeia global de valores da indústria automobilística estiveram associadas a um processo de mudanças na economia mundial, principalmente em relação ao fortalecimento de economias em desenvolvimento, como os BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África, além de outros países asiáticos e da América Latina. Isso pode ser constatado ao analisarmos os indicadores da produção do setor, o fluxo de exportações e importações, assim como o investimento estrangeiro direto. Três principais fatores foram apontados como razões/motivos para a expansão da indústria automobilística para as economias em desenvolvimento: 1) a saturação dos grandes mercados existentes no mercado europeu e norte-americano, principalmente após a crise de 2008; 2) o aumento da competição nos mercados domésticos levando as empresas a adotarem novas estratégias de produção; e 3) a baixa taxa de crescimento dos grandes mercados tradicionais e a expectativa de taxas aceleradas de crescimento dos grandes mercados emergentes, fazendo com que as fabricantes de automóveis não quisessem ficar de fora de uma potencial expansão nas vendas nesses mercados.

Esse cenário explica, em parte, o crescimento da indústria automobilística no Brasil, pois o maior dinamismo do país, principalmente entre 2004 e 2013, com crescimento econômico e fortalecimento do mercado interno, promoveu um amplo interesse da indústria automobílistica, com a produção de autoveículos apresentando uma taxa média de crescimento para esse período de 7,8%. Esse crescimento foi determinado, predominantemente, pela dinâmica do mercado interno, dado que a participação das exportações como proporção total da produção de autoveículos saiu de 35,5% em 2005, para 15,8% em 2013. Como contrapartida, a participação do mercado interno como destino da produção de autoveículos saltou de 64,5% em 2005 para 84,2% em 2013. Nitidamente o que dinamizou o mercado de automóveis no Brasil foi o mercado interno.

Fonte: Anfavea

A participação da indústria automobilística no PIB industrial aumentou de 14,6% em 2004 para 18,7% em 2012. O faturamento líquido saiu de US$ 22 bilhões em 2004, para US$ 87 bilhões em 2013. O número de empregos gerados saiu de 89 mil em 2004 para 135 mil em 2013.

Fonte: Anfavea

Fonte: Anfavea

Em 2012, o governo Dilma (PT) anunciou Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores, o Inovar-Auto, com vigência até 2017. O principal objetivo do programa era criar condições de competitividade e incentivar as empresas a fabricar carros mais econômicos e mais seguros, investir na cadeia de fornecedores e em engenharia, tecnologia industrial básica, pesquisa e desenvolvimento e capacitação de fornecedores. O Inovar-Auto tinha como principal objetivo criar condições e garantir a competitividade da indústria automotiva nacional, num momento em que o Brasil estava no foco dos grandes investimentos mundiais das principais empresas do setor. Para lograr seus objetivos, o Decreto trazia uma série de metas e exigências – com foco na melhoria da eficiência energética dos veículos; em investimento em tecnologia e pesquisa e desenvolvimento e nacionalização das etapas produtivas, dentre outras – que são compensadas com estímulos/incentivos governamentais.  A ideia básica do programa era, basicamente, estimular o investimento para promover um upgrading nas estruturas produtivas do setor e ampliar sua inserção internacional.

Entre 2014 e 2016, instalaram-se e ainda se instalariam 10 novas fábricas de carro no Brasil, totalizando um investimento de R$ 14 bilhões, aproximadamente US$ 4.700 bilhões. Segundo as próprias empresas, todos os investimentos eram estimulados pelo Inovar-Auto e pelo vigor do mercado interno. No ranking de produção mundial de autoveículos, o Brasil ficou na 7º posição entre os maiores produtores de autoveículos em 2013.

Após a crise política e econômica a partir de 2015, o PIB brasileiro passou apresentar uma perda de dinamismo, com taxas negativas em 2015 (-3,55%) e 2016 (-3,28%), com pífio crescimento em 2017 (1,32%), 2018 (1,78%) e 2019 (1,14%).

Fonte: IPEADATA

Esse baixo dinamismo do mercado interno vai afetar profundamente a dinâmica da indústria automobilística, que tem sua produção voltada, fundamentalmente, para o mercado interno. Entre 2014, 2015 e 2016, haverá taxas negativas de crescimento, respectivamente -15,1%; -22,7%; e -10,5%. Somados, uma queda na produção de autoveículos de 48,3%, com um número total de autoveículos produzidos saindo de 3.738.448 em 2013, para 2.195.712 em 2016. A recuperação entre 2017 e 2019 soma um total de crescimento de 32,5%, mas com a produção ficando apenas 2.951.446 autoveículos, muito longe do auge do crescimento do setor. Essa perda de dinamismo pode ser creditada à crise do mercado interno, já que em 2014, 88,7% da produção era destinada ao mercado interno. Com a crise do mercado interno, houve um maior redirecionamento da produção para o mercado interno, principalmente a Argentina, com a participação do mercado interno se reduzindo para 71,5% em 2017. Mesmo considerando o baixo crescimento em 2018 e 2019, há um redirecionamento da produção para o mercado interno, com a sua participação voltando a representar 85,3% em 2019.

Esse baixo dinamismo da indústria automobilística, em decorrência da crise do mercado interno e a baixa inserção externa da indústria automobilística via exportações, resultará em uma queda do faturamento líquido de US$ 87.294 bilhões em 2013, para US$ 54 bilhões em 2019. O número de empregos gerados também caiu de 135 mil em 2013 para 106 mil em 2019.

A produção da Ford apresenta um perfil muito similar à dinâmica da produção da indústria automobilística brasileira. Entre 2004 e 2013, a produção total de autoveículos da Ford apresentou uma taxa média de crescimento de 6%, com o mercado interno sendo seu principal determinante, já que a participação do mercado interno como destino da produção da empresa saiu de 58,9% em 2004 para 79% em 2013. Por outro lado, um fato que chama a atenção é que a participação da Ford como uma das principais empresas do setor apresenta uma queda durante esse período, saindo de uma participação de 11,1% em 2005, para 8,9% em 2013.

Com a crise econômica e contração do mercado interno, assim como a indústria automobilística geral, a Ford também apresentará taxas negativas de crescimento em 2014 (-25,6%), 2015 (-7,6) e 2016 (-8,0%),  com uma taxa média de crescimento entre 2017 e 2019 de 3,7%, também não recuperando seu mesmo dinamismo anterior 2013, já que sua produção total de autoveículos era de 331.032 unidades, e caiu para 227.214 em 2019, o que explica sua queda na participação no total da produção de autoveículos no Brasil.

            Os indicadores e a própria dinâmica da indústria automobilística deixam em evidência que a principal variável para seu dinamismo é o mercado interno, o qual está em crise desde 2015.  A crise da Covid agravou a crise da economia brasileira, sem perspectiva de retomada do crescimento, principalmente considerando a grave crise no mercado de trabalho, que atualmente soma quase 20% de desemprego (taxa de desocupação de 14,4% e taxa de desalento de 5,7%), além da elevada precarização das condições do trabalho com uma taxa de subutilização de mais de 30%. Sem perspectiva de retomada do crescimento econômico de forma vigorosa e contínua, é previsível que a indústria automobilística tome a decisão de fechar suas unidades no Brasil.

É importante notar que ainda no governo Temer, houve o Rota 2030, em uma tentativa de dinamizar o setor, principalmente estimulando a inovação, mas não o suficiente para que a produção de autoveículos retomasse seu nível de atividade do período de 2013, principalmente porque é um programa que está desvinculada de um processo de recuperação do crescimento econômico, em particular do mercado interno.

Com o governo Bolsonaro, essa mudança da perda de dinamismo do mercado interno está inserida em um contexto internacional onde o Brasil começou a perder força no cenário global, com o Brasil caindo para a 8ª posição no ranking mundial de produtores globais, além de ter um governo que não tem a indústria automobilística nas suas prioridades, além de ter a perda de renda do consumidor e o enfraquecimento das exportações pela crise argentina.

Outra variável relevante do ponto de vista das características da produção mundial de veículos é que o Brasil perdeu relevância no desenvolvimento de novos carros, que atualmente se concentram eletromobilidade, direção autônoma e tudo o que envolve novas necessidades de transporte, isto é, a transição dos carros a combustão para os modelos híbridos e elétricos. Mesmo considerando que o Brasil tenha equipes de engenharia de alto nível, o país não está inserido no novo mapa de desenvolvimento dos automóveis.

Em um setor onde os investimentos são extremamente disputados entre as filiais espalhadas pelo mundo, com os países asiáticos se tornando os mercados mais atrativos no mundo –  como China e Índia, aliado a uma conjuntura que mistura a crise provocada pela pandemia com a necessidade de gastar mais dinheiro nas tecnologias do carro do futuro, as matrizes tendem a ser mais seletivas e o Brasil parece estar cada vez mais distante de um mercado atrativo, do ponto de vista da sua capacidade de desenvolvimento tecnológico, como também do ponto de vista de atratividade do seu potencial de mercado interno.

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