Dilemas da gestão e governança participativa no Brasil

Dilemas da gestão e governança participativa no Brasil

Engenheiro Civil Ubiratan Félix
Professor do IFBA /SENGE-BA

O modelo nacional desenvolvimentista implantado por Getúlio Vargas na década de 1930 foi mantido nos seus aspectos principais por todos os governos posteriores, incluindo os do regime militar. A marca deste modelo foi o papel protagonista do Estado Brasileiro no financiamento das políticas públicas, no incentivo à industrialização através da politica de substituição das importações, na centralização dos recursos econômicos e decisões políticas na União em detrimento dos entes federativos estaduais e municipais. Também na relação autoritária e repressiva com as organizações sociais e sindicais, e na interlocução privilegiada com entidades empresariais e tecnocráticas.

Esse modelo começou a ser questionado através de dois movimentos distintos. O primeiro foi a luta pela democratização do Estado Brasileiro, o que marcou o fim do regime militar com restabelecimento das eleições diretas, a instalação da Assembleia Nacional Constituinte e aprovação da Constituição de 1988 que devolveu e ampliou a autonomia municipal e estadual com incorporação de antigas e novas competências federativas. O segundo foi a discussão da reforma do Estado e do modelo econômico vigente que estava em crise desde a década de 1980. Os sintomas mais evidentes eram: a evolução de um quadro de inflação alta para hiperinflação, endividamento do Estado e o baixo crescimento econômico.

A suspensão do pagamento da dívida externa, o rompimento com o Fundo Monetário internacional e a edição de diversos programas de ajuste econômico heterodoxo no Governo Sarney criou as condições politicas e sociais para proposição e implantação de uma nova matriz econômica em consonância com os modelos implantados nos países capitalistas centrais (notadamente Inglaterra e Estados Unidos). A matriz preconizava o enxugamento da máquina estatal, adoção do Estado regulador em substituição ao Estado indutor das atividades econômicas, transferências de atribuições do Estado para a iniciativa privada, responsabilidade fiscal, flexibilização dos direitos sociais e trabalhistas, hegemonia do capital financeiro na condução econômica e inovação tecnológica da gestão do trabalho e produção.

Neste sentido, era necessário que o Estado Nacional propusesse à sociedade um modelo de Gestão e Governança das Políticas Públicas coerente com a matriz econômica adotada. Ou seja, que se alicerçava na “colaboração e parceria” entre os agentes públicos e privados na coprodução de serviços, políticas e bens públicos, e da melhoria do desempenho focado em resultados com objetivo de gerar valor público — entendendo-se valor público como retorno investimento da sociedade no Estado através dos impostos em bens e serviços públicos para o cidadão — e na sustentabilidade econômica e social.

Em decorrência do ajuste estrutural com adoção de uma nova matriz econômica, denominada de Neoliberal a partir da década de 90, concebia a necessidade de políticas de austeridade com diminuição do investimento e gasto público, privatização e enxugamento da máquina pública federal e transferência de atribuições do Estado Nacional para o poder local.

O Estado Brasileiro adotou princípios da Governança colaborativa que preconizava atuação conjunta de instituições governamentais, empresariais, organizações não governamentais e representações do movimento popular e sindical. A proposição e instalação das câmaras setoriais tripartites instaladas no Governo FHC se propunha a discutir: níveis de produção, salários, empregos, impostos e incentivos fiscais para cadeia automotiva é um bom exemplo de governança colaborativa implantada pela União.

Neste novo contexto, os governos locais foram demandados no sentido de adequar suas instituições e modos de agir a um mundo cada vez mais globalizado, competitivo e interdependente. Governos municipais — tradicionalmente voltados para solucionar problemas locais e específicos relacionados ao planejamento urbano, educação, saúde, assistência social e as outras políticas públicas locais — são “convocados ou chamados” a pensar, discutir e propor estratégias urbanas que considere os riscos e oportunidades oferecidas no mundo globalizado.

Ao mesmo tempo, os gestores urbanos sofrem pressões por parte dos setores da população e das comunidades locais que são expostas aos efeitos colaterais do progresso econômico e da globalização. Por exemplo: aumento do desemprego estrutural, criminalidade, violência urbana, deterioração ambiental, queda da qualidade de vida, aumento da vulnerabilidade social, construção de “Aparatos Estatais” paralelos e questionamento da legitimidade do Poder e do sistema representativo Municipal.

Em vista desse quadro, a gestão pública é demandada a criação de condições favoráveis para uma inserção progressiva dos setores mais modernos e dinâmicos da cidade na economia globalizada. Além de procurar medidas de mitigação dos problemas sociais, econômicos e ambientais.

No Brasil, o debate teórico sobre gestão urbana tem sido caracterizado, desde início dos anos de 1990, por vários fatores: a contraposição entre as concepções dos modelos gerencial e democrático participativo; as transformações ocorridas em função da globalização; a imposição do modelo neoliberal de desenvolvimento; as crescentes demandas por participação pela sociedade civil que levaram a transformações importantes e podem ser compreendidas através da gestão urbana na emergente sociedade de rede. Essa, por sua vez, terá como consequência o aumento do desempenho administrativo e da democratização dos processos decisórios locais, onde governar passa a ser um processo interativo. Nenhum ator detém sozinho o conhecimento e capacidade de recursos para resolver os problemas unilateralmente.

A ampliação do debate da Governança é consequência da retração do Estado promovida pelas políticas neoliberais, que provocou o enfraquecimento das instituições públicas em sua capacidade de gerir eficientemente os crescentes problemas urbanos. Portanto, é possível distinguir entre versões de Governança que enfatizam a eficiência governamental e outros que enfatizam o potencial democrático e emancipatório.

Apesar das diferenças ideológicas das duas abordagens, percebe-se a confluência de ambas para as concepções de práticas de Governança e de gestão em rede. Aqui, evidencia-se uma aproximação do modelo gerencial e democrático participativo, sem, porém, chegar a uma dissolução dos antagonismos ideológicos que estão na origem das propostas.

Entretanto, a expansão do número de atores envolvidos nos arranjos de Governança acarreta um potencial conflito com o próprio princípio democrático. Enquanto os processos governamentais e a democracia liberal ganham legitimidade política — primordialmente pelo fato de serem baseados no sufrágio universal através do voto popular —, os participantes de sistema de Governança não dispõem, em geral, de legitimidade oriunda diretamente da soberania popular. Para evitar um vácuo de legitimidade em processos de Governança, geralmente adota-se o critério de que o individuo ou organização, para que possa participar em um arranjo de Governança, deve possuir alguma qualidade ou recurso específico que justifique seu envolvimento. Por exemplo, no Conselho Municipal de Transportes, os estudantes devem participar na qualidade de usuário significativo do sistema (em alguns municípios são 30 % das viagens) e os Concessionários de Ônibus, por serem operadores do sistema, o Conselho de Engenharia e Agronomia ou entidade similar por congregar profissionais que detém o saber técnico e atribuições para atuar no planejamento da operação do sistema mobilidade e transporte urbano.

Neste sentido, é necessário privilegiar certos grupos de acordo com a substância do problema ou do conflito que precisa ser resolvido. Parece imprescindível que tais arranjos de Governança sejam resultado de amplas negociações que envolvam além das partes interessadas e a câmara municipal, de modo que tais formas alternativas de deliberação política possam efetivamente alcançar legitimidade democrática.

No Brasil, o debate em torno da reforma e modernização do Estado e da gestão pública é determinado por duas principais vertentes de reflexão teórica e de experiências práticas em gestão urbana (Frey, 1966). Primeiro, uma abordagem social-democrata de cunho neoliberal que enfatiza primordialmente o enxugamento do Estado e a modernização gerencial do setor público. Na prática, a política brasileira adotou fortes traços do neoliberalismo (Oliveira, 1999), sobretudo no tocante a política econômica – financeira. Segundo, abordagem democrática-participativa visa estimular a organização da sociedade civil e promover a reestruturação dos mecanismos de decisão, em favor de maior envolvimento da população no controle social da administração pública e na definição e implantação de políticas públicas.

Enquanto isso, o modelo gerencial da administração pública é inspirado na prática do gerenciamento de empresas privadas, buscando transferir instrumentos de gerência empresarial para o setor público. O modelo democrático participativo preconiza o aumento do controle social pela democratização das relações de Estado-Sociedade e a ampliação da participação da sociedade civil e da população na gestão da coisa pública.

No modelo gerencial existe uma separação clara entre a esfera política, onde são tomadas as decisões políticas e dadas as diretrizes básicas para os gestores públicos. A esfera administrativa, dinamizada através da ampla liberdade gerencial, é considerada essencial para garantir os resultados.

No modelo democrático participativo, procura-se promover condições de “accountability” através de estímulos ao envolvimento e à participação da sociedade civil organizada e dos cidadãos no processo de formulação e implementação e no controle das políticas públicas. Já o modelo gerencial visa isolar e proteger o gestor público das pressões oriundas da sociedade.

O modelo democrático participativo requer novas habilidades do gestor público, sobretudo em relação a articulação e a cooperação com os mais variados atores políticos e sociais. No modelo gerencial, o gestor é avaliado conforme sua capacidade de alcançar as metas estabelecidas pelo sistema de decisão política. Já no modelo democrático participativo, ganha relevância o próprio processo de gestão pública. Particularmente o que diz respeito ao seu caráter democrático.

Na vida real das gestões municipais, observa-se a influência das condições, muitas vezes restritivas, com as quais os governos locais se defrontam com a mescla das duas abordagens. Governos Municipais de esquerda recorrem a instrumentos gerenciais e governos conservadores de tendência neoliberal vêm se obrigando a abrir espaços para participação popular em busca de legitimidade política.

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