Senge BA entrevista a engenheira Clarice Romariz

Senge BA entrevista a engenheira Clarice Romariz

Por Tanara Régis
Assessora de Comunicação do Senge BA

Nordestina (nascida em Alagoas – Maceió), mãe, esposa, engenheira civil e Gerente de Contratos da Odebrecht Oil & Gas.  Clarice Romariz é uma das várias brasileiras que desempenham importantes identificações que nos interpelam e posicionam na vida. Identificações repletas de referências culturais que requisitam responsabilidades, desafios e superação. O que torna sua história, no mínimo curiosa,  é como conseguiu equilibrá-las e alcançar a realização profissional sem lançar mão da vida pessoal e familiar. “Homens e mulheres deveriam ter essa opção na vida. (…) O mundo da engenharia no Brasil, porém, tem um problema crônico que é a expectativa de que o profissional viva o trabalho e quase não tenha vida pessoal (…) Isso não é bom para ambos gêneros”, ressalta Clarice.

Outro aspecto de relevante contribuição, sem dúvida, é como conseguiu alcançar cargo de liderança na profissão, trabalhando em campo de obra, não se limitando aos escritórios. “Das minhas colegas de faculdade, a  maioria terminou atuando em áreas tidas como mais femininas da engenharia, normalmente em escritório, como projetos, planejamento, comercial ou acadêmica”, lembra Clarice.

Então, como superou os preconceitos, o machismo, o assédio moral? Como conquistou o respeito e a confiança em uma grande empresa?

Clarice faz parte do time estratégico da Odebrecht desde 2000, mesmo ano que se formou em engenharia civil pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Tem 2 anos em projetos de construção e 12 anos na indústria de Óleo e Gás, sendo 1,5 anos em estaleiro.

Atuou em grandes projetos da empresa como a construção do Complexo Ford, em Camaçari – Bahia, a construção da Termelétrica Norte-Fluminense, em Macaé (RJ), e na Base Macaé da Odebrecht. Tem vasta experiência em gerência de projetos, desenvolvimento de negócios, administração contratual, comercial e planejamento na Europa, Ásia e Brasil.

Especialista em gerenciamento de projetos na área de Óleo e Gás, Clarice é reconhecida pela liderança ativa e capacidade de execução que foram fortalecidos pela experiência de quatro anos e meio de trabalho no exterior.

Confira entrevista completa!

SENGE/BA – Como era a realidade da presença de mulheres no curso de Engenharia Civil da UFBA em 1995? As expectativas de mercado de trabalho e atuação em campo para as estudantes eram positivas?

Clarice Romariz (CR) – Éramos 25% do total da turma quando começamos e terminamos com menos de 20%. Esse número era muito melhor do que em outras engenharias, como a Mecânica, por exemplo. O ambiente da Politécnica da UFBA é predominantemente masculino e isso pode ser um pouco intimidador no início, mas aos poucos você vai achando os seus espaços.

As expectativas de mercado de trabalho eram péssimas. Naquela época todos me questionavam por que estava fazendo engenharia já que a maioria dos engenheiros se formava e não conseguia exercer a profissão. Essa realidade, obviamente, era ainda mais difícil para as mulheres engenheiras.

Das minhas colegas de faculdade, a  maioria terminou atuando em áreas mais femininas da engenharia, normalmente em escritório, como projetos, planejamento, comercial ou acadêmica.

A faculdade é uma boa escola não apenas para questões técnicas. É nela que iniciamos nosso convívio com esse mundo ainda masculino da Engenharia. Buscar a parceria dos colegas é um excelente caminho para a vida profissional. Não gosto de ambientes monocromáticos e acho que a diversidade, não só de gênero, mas de raça, origem social entre outros, sempre trará melhores resultados. Saber circular e até criar um ambiente propício para essa diversidade é algo que precisamos iniciar ainda no ambiente estudantil. Tive a sorte de cursar uma universidade pública onde as oportunidades são ainda melhores.

Senge BA – Você ingressou no mercado de trabalho em 2000, quando iniciou a carreira na Odebrecht como engenheira de campo, atuando na construção do Complexo Ford, em Camaçari – Bahia. Houve desafios nas relações de gênero com a equipe de trabalho?

CR – Houve, claro. Mas as dificuldades se transformaram em grandes oportunidades, porque  ser “diferente” também te coloca no holofote positivo quando se consegue atingir bons resultados, o reconhecimento é o lado bom do desafio.

O mais engraçado é que fui para o campo pronta para ter dificuldade com a turma do campo (os mestres de obra, pedreiros etc), mas não foi aí o mais difícil. Na verdade, depois de rompido o primeiro desconforto de ter homens mais velhos e experientes sendo liderados por uma moleca recém saída da faculdade, consegui uma coesão e fidelidade que sou grata até hoje. Digo sempre que foi meu time que me fez crescer. O gerente da obra brincava quando superávamos metas, dizia que “os meninos de Clarice” eram imbatíveis.

A maior dificuldade estava sempre entre os líderes que tentavam me colocar no escritório, ou buscando  proteger, me limitavam profissionalmente. Nunca senti má fé, mas sempre há uma cultura a ser rompida. Tive sorte, porém, de ter pessoas que apostaram e acreditaram em mim.

SENGE BA – Sua carreira conta com grandes experiências, como a construção da Termelétrica Norte-Fluminense, em Macaé (RJ), e na Base Macaé da Odebrecht. A atuação na área de Engenharia Civil ainda é vista por muitos como um ambiente de trabalho árduo para as mulheres devido situações de assédio moral nas relações de gênero. Acredita que essa ainda é uma realidade nas empresas brasileiras? Já sofreu algum constrangimento por ser uma mulher atuando em campo?

Sim, é uma realidade no Brasil e no mundo. Nunca sofri algo de maior porte, mas posso citar inúmeras situações mais brandas. O assédio ou constrangimento, quando não tão diretos, são muito difíceis de serem claramente identificados. Ficamos sempre na dúvida se a pessoa esta apenas sendo gentil, e temos medo de nos posicionar.

O cavalherismo muitas vezes é um machismo disfarçado, que termina por limitar a mulher. Em um ambiente de trabalho temos que ser todos profissionais, educação e gentileza valem para homens e mulheres. Você precisa estar muito segura e ser hábil para saber dar o limite sem impedir as relações interpessoais que são fundamentais num ambiente de trabalho.

Conheci muitas mulheres que viviam com um certo medo, que elas chamavam de “se dar o respeito”, mas que na verdade só as faziam não se misturarem, não se expor em nada e isso as isolavam, essa não é a solução. Você precisa estar a vontade e ter confiança no seus colegas de trabalho. Não podemos trabalhar como se estivéssemos em lados opostos, o foco tem que ser comum.

SENGE/BA – Mulher, nordestina e gerente de contratos da Odebrecht Oil e Gas. Enfrentou preconceitos para alcançar espaço de liderança na carreira?

CR – Sim, inúmeras vezes. Lembro de uma vez que ainda como engenheira de campo fui apresentar uma atualização do progresso da obra a um diretor que acabara de assumir o projeto.No meio da  apresentação, ele se direcionou  para meu gerente e disse que não conseguia entender nada do que eu falava por conta de meu sotaque. Fechei minha pasta e fui me retirando da sala, ele ficou atônito e perguntou o que eu estava fazendo. Respondi que não teria como ajudá-lo, já que meu sotaque era parte de mim e não poderia mudar, mas que poderia mandar o relatório para ele ler. Antes de sair, porém, voltei e desejei boa sorte na capacidade dele de compreensão, já que na reunião anual da empresa o presidente falaria com o mesmo sotaque que o meu. Acho que nesse sentido estar numa empresa de origem nordestina ajudou muito.

Quanto a ser mulher em cargos de chefia,  sempre tive oportunidades de conversar com meus líderes sobre as possíveis dificuldades, discutíamos e traçávamos ações juntos.Tenho outra boa história para contar. Com 26 anos ganhamos um contrato de manutenção de plataformas da Petrobras na Bacia de Campos, foi quando saí da Engenharia Civil e comecei minha vida de Petróleo. Assumi a gerência de uma plataforma. Minha primeira dificuldade era ir a bordo, pois as vagas são limitadas e os camarotes são divididos entre 2 ou 4 pessoas e, nesta plataforma, quase não tinham mulheres, exceto a turma da limpeza. Então, não conseguia vaga para embarcar e assumir minha função. Ao fim de algumas tentativas, disse que iam descer 4 funcionários e que ficaria sozinha num camarote se necessário, mas que subiria no dia que tinha agendado. Depois de 3 meses, o mesmo gerente que criou tanta dificuldade me chamou no escritório dele e falou que ao me ver desembarcar na plataforma não acreditou que uma mulher, e tão nova, fosse capaz de fazer um bom trabalho, mas reconheceu as melhoras na gestão de manutenção e que tinha tranqüilidade de me dar qualquer referência profissional se , um dia, eu precisasse.  A partir daí a relação com o cliente se consolidou e tivemos o prazer de formar outras gerentes que não tiveram a mesma dificuldade de assumir as funções a bordo.

SENGE BA – Assédio moral e ocupação de espaço de poder pelas mulheres também é tema de palestras que ministra. As empresas brasileiras estão preparadas para garantir os direitos profissionais das trabalhadoras da área de Engenharia?

CR – As empresas de maior porte têm capacidade de garantir os direitos sim, e na maioria delas existe uma forte intenção de melhora nestes pontos. Elas têm uma necessidade de profissionais qualificados e não podem abrir mão de 50% da força de trabalho ativa de um país. Ainda vemos poucas mulheres em alto escalão, mas a cada ano entram mais mulheres nas seleções de trainees, um crescimento muito significativo. Hoje já temos um número bem maior de mulheres na média gerência, esse processo de ocupação dos espaços foi visível ao longo de minha carreira. Será reconfortante quando estivermos falando não das exceções em altos cargos, mas da regra.

O mundo de engenharia no Brasil, porém, tem um problema crônico que é a expectativa de que o profissional viva o trabalho e quase não tenha vida pessoal. Trabalhamos longas jornadas e muitas vezes fins de semana. Existe quase que uma competição no mundo corporativo por quem trabalha mais. Isso não é bom, nem saudável, para ambos gêneros.Mas para as mulheres com filhos pequenos é ainda mais difícil. Essa é a fase crítica para as mulheres e onde realmente a diferença de gêneros pesa mais para as profissionais.

SENGE BA – Você cita, então, a chamada “jornada dupla de trabalho” que as mulheres enfrentam na empresa e no lar?

Clarice com o marido, comemorando aniversário da filha do casal, Maya.
Clarice com o marido, comemorando aniversário da filha do casal, Maya.

CR – Não gosto da ideia de apenas a mulher ser a responsável pela casa e ter a tal jornada dupla. O projeto profissional da esposa tem que ser um acordo familiar e a participação do marido é fundamental. Marido não deve ajudar em casa e sim dividir a responsabilidade como dois adultos que são. A escolha de seu parceiro é algo fundamental em sua vida e sem o meu não teria conseguido chegar onde estou hoje. Neste sentido, não somente para as mulheres, mas também para os homens, o excesso de carga horária no trabalho é negativo para a condição da maternidade e paternidade. A revista Veja mostrou em matéria de capa em 2012 que o Brasil é um dos países que tem mais mulheres executivas. Um dos fatores diferenciais é a possibilidade de contratação de  empregadas domésticas, no entanto, percebi que a maioria das executivas eram divorciadas. Acredito que muito se deve ao desequilíbrio nessa relação trabalho x lar. O ideal é a mulher e o homem terem a opção saudável de se realizarem no trabalho e na vida pessoal. O modelo do homem trabalhando loucamente e mal vendo a família e a mulher sendo responsável pela casa, não cabe mais em nosso tempo.

No primeiro ano de minha filha, ainda morando no exterior, precisei fazer algumas viagens a trabalho. Consegui negociar com a empresa para levar minha filha e ainda me ajudou a identificar e contratar  uma babyssiter (babá) no local. Poderia não ter viajado e isso me foi ofertado, mas achei importante minha presença e me senti segura para fazer da forma como foi feito.

Mas não é somente a empresa que precisa se transformar. A legislação trabalhista precisa avançar, por exemplo, quanto a licença paternidade, que atualmente é de apenas 5 dias e deveria ser igual para homens e mulheres.

SENGE BA – Você trabalhou pela Odebrecht na Europa e Ásia, e se relacionou com culturas bastante diversas da brasileira. Como foi sua experiência profissional em equipes estrangeiras?

Clarice Romariz com equipe coreana pela Odebrecht Óleo & Gas.
Clarice Romariz com equipe coreana pela Odebrecht Óleo & Gas.

CR – A experiência foi fantástica e a exposição a novas culturas nos faz refletir sobre a nossa desfazendo verdades absolutas. Um bom exemplo éa capacidade do europeu de equilibrar vida profissional e pessoal.Saber se relacionar com outras culturas exige atenção e humildade. Precisamos primeiro entender como eles trabalham para poder aprender e depois introduzir nossas contribuições.

No quesito condição da mulher,  vivenciei realidades diametralmente opostas. O que falo abaixo é minha experiência apenas e não posso fazer grandes reflexões sobre a condição feminina nestes lugares, já que não sou estudiosa do assunto.

Na Europa, existe uma flexibilidade enorme para a mulher, as licenças maternidades são longas e é possível trabalhar meio período, por exemplo. Eu mesma usufrui do meio período por alguns meses após o nascimento de minha filha e fiquei surpresa com quanta coisa pude fazer nesta jornada reduzida, praticamente mantive todas as minhas responsabilidades apenas reduzindo as terríveis e improdutivas reuniões.

Porém, para minha decepção, o excesso de benefícios fez com que muitas mulheres européias optassem por não trabalhar. Percebo que existe um forte movimento de retrocesso, da exaltação da dona de casa em detrimento da mulher profissional.

Na Ásia é o outro extremo, a cultura é extremamente machista e as mulheres quando trabalham, normalmente, estão em funções extremamente simples. Recentemente li uma reportagem mostrando a preocupação da Coréia do Sul e Japão quanto a esta realidade limitar o crescimento do país, pois as mulheres representam 50% da força de trabalho e, no caso deles, são extremamente qualificadas.

Quando cheguei na Coréia do Sul, percebi muitas mulheres vindo em nosso escritório e olhando minha sala e falando com minha secretária. Fui perguntar do que se tratava e minha secretária disse que elas nunca tinham visto uma gerente e queriam me conhecer. Isso claro, é a realidade de um estaleiro, que é uma construção extremamente pesada, não sei como acontece em outras áreas.

SENGE/BA – A trajetória de sua carreira profissional é referência para muitas trabalhadoras e trabalhadores que desejam alcançar espaços de liderança e valorização profissional. O que você orienta as mulheres que sofrem com assédio moral e a desvalorização nos espaços de liderança?

CR – Nunca se torne o pior de um homem (autoritária, intolerante, arrogante, inflexível e centralizadora), você não precisa disso para ter sucesso. Existe espaço para você do seu jeito. Cuidado com gentilezas e cavalheirismos excessivos, muitas vezes isso é apenas um disfarce para assédio, constrangimento ou simplesmente dependência masculina. Se você acha que tem algum excesso, provavelmente ele existe mesmo, não guarde para você, converse com alguém sobre isso e procure a melhor forma de agir, a lei esta do seu lado. Empresa séria nenhuma quer um homem sem moral em seu quadro. Se a empresa não se posicionar, ela não merece você, ache outra melhor. Saiba aproveitar as vantagens de ser mulher, as pessoas esperam criatividade, sensibilidade, detalhismo e imagem de transparência. Se você se encaixa nesse perfil , ótimo.

Faça de seus colegas seus grandes parceiros, eles serão seu escudo para situações ruins. Descubra suas forças, use-as, e conheça ainda melhor suas fraquezas e quando não puder superá-las ache uma forma de mitigá-las.

Não se limite, muitas vezes você é a responsável por não acreditar em si mesma . Quando te derem uma oportunidade, agarre-a, seus líderes sabem quem é você e as dificuldades que  enfrentará. Ninguém nasce um profissional pronto, nossas experiências é que nos farão crescer, então “se jogue”.

 

 

 

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