Por Wesley Ferro Nogueira
O isolamento social produziu uma série de
externalidades positivas que representou transformações muito significativas em
várias partes do mundo. As cidades comemoraram a redução da emissão de poluentes,
o fim dos congestionamentos nas áreas urbanas e a diminuição do número de
acidentes no trânsito.
Vários relatos foram divulgados ao redor do mundo
com manifestações de êxtase de moradores pelo resgate de condições até então
inimagináveis antes da pandemia: a possibilidade de visualizar novamente o
horizonte na cidade de Los Angeles ou o entardecer em São Paulo e até o
cristalino das águas então poluídas dos canais de Veneza, entre outras.
Essa redescoberta da possibilidade de qualidade
de vida das cidades impulsionou a tomada de decisão por parte dos gestores
públicos no sentido de garantir a manutenção dessa condição no pós-crise, com
diversos exemplos espalhados: Paris, Londres, Berlim, Bruxelas, Barcelona,
Milão e muitas outras cidades estão estabelecendo restrições para o uso do
automóvel, ao mesmo tempo em que avançam na implantação de redes cicloviárias e
de mobilidade a pé como alternativas para o deslocamento seguro das pessoas.
Investir na mobilidade urbana sustentável é o
caminho natural para que as conquistas das cidades possam ser mantidas e para
que não sejamos mais obrigados a conviver também com as milhares de mortes
decorrentes dos acidentes de trânsito e dos problemas respiratórios ocasionados
pela grande concentração de poluentes no ar das cidades. Se as mortes
provocadas pelo coronavírus nos enchem de tristeza, aquelas outras também devem
ser motivo para a nossa indignação.
Não resta nenhuma dúvida de que os modais ativos
têm um papel fundamental para a qualidade de vida das cidades e que os gestores
locais têm agora um importante aliado para avançar na implantação ou expansão
das redes cicloviárias e de mobilidade a pé dentro da perspectiva de defesa da
vida. Esse possível novo cenário tem animado os militantes da mobilidade ativa e
muitos já vêem uma revolução em marcha, mas é preciso ter ponderação nesse
momento quando se fala desse futuro, principalmente quando se coloca a questão
do transporte público.
O deslocamento a pé ou por bicicleta é adequado
para pequenas distâncias e dentro da perspectiva de integração com os sistemas
de transporte público, permitindo a realização da primeira e da última milha.
Considerando a organização das nossas cidades sob a lógica do grande
distanciamento entre a periferia e as áreas de centralidade, imaginar que os
modais ativos vão passar a ser a principal forma de ligação entre esses dois
polos é desconhecer a realidade de grande parte da população brasileira.
Em que pese os riscos reais relacionados à
convivência próxima de usuários dentro de trens e ônibus, e que deverão ser
monitorados e eliminados, o transporte público ainda vai permanecer sendo
estruturador dentro dos territórios e o principal instrumento para garantir a
viagem diária de milhões de pessoas no país.
Muitas atividades econômicas ainda não serão
possíveis por meio do teletrabalho. Muitos serviços informais ainda continuarão
a ser realizados. Muitos deslocamentos aos equipamentos públicos ainda serão
necessários. Muitas pessoas ainda vão continuar dependendo do transporte
público para acessar emprego, serviços, lazer e demais atividades.
Hoje é feita uma discussão em várias partes do
mundo se não haverá um deslocamento da demanda para os modais ativos e também
para o transporte individual motorizado, em função dos possíveis riscos de
contágio com o vírus dentro de trens e ônibus do transporte público. O poder
público e/ou os operadores vêm adotando as devidas medidas sanitárias para que
as viagens dos usuários possam acontecer com segurança, como a exigência do uso
de máscaras e de equipamentos de proteção individual; a priorização do uso de
cartões em vez de dinheiro para o pagamento da tarifa; o distanciamento no
interior dos veículos; o reescalonamento de horários das atividades, etc.
Além do possível medo, os privilégios concedidos
aos automóveis e as atuais tarifas dos sistemas públicos de transporte também
são fortes impeditivos para o seu uso pela população e esses são outros
desafios para o poder público. Se as cidades ficaram muito melhores sem a
circulação daquelas quantidades imensas de veículos, está na hora dos gestores
implementarem medidas para a restrição do uso de automóveis, assim como está
expresso na Política Nacional de Mobilidade Urbana. Tem que se aproveitar que
essa recuperação da qualidade de vida das cidades ainda está fresca na memória
das pessoas para que isso se consolide como atributo permanente da vida urbana.
Também é impraticável a convivência com as atuais
tarifas dentro do transporte público. Deve se avançar na incorporação de
receitas extratarifárias que possam contribuir para o barateamento das tarifas
e, principalmente, para o financiamento completo das viagens de segmentos
vulneráveis que se encontram fora dos sistemas de transporte coletivo por
incapacidade econômica de pagamento. A redução das tarifas para os usuários e a
implantação da tarifa zero para os segmentos extremamente pobres devem
funcionar como instrumentos para a inclusão social.
Nesse momento de discussão de cenários pós-crise,
há um risco nada desprezível de incentivo ao uso do automóvel, em detrimento do
transporte público, com a justificativa de que seria para evitar a contaminação
pelo vírus. Também não dá para reduzir a importância dos sistemas de transporte
público dentro da matriz de deslocamentos modais, mesmo que seja sob o argumento
da ampliação da malha ativa, que seguramente precisa acontecer, mas sem
restrições ao uso de ônibus, metrôs e trens.
A tão necessária e urgente ampliação das redes
cicloviária e de mobilidade pedonal, que irão criar alternativas para acesso
das pessoas à cidade, não está em conflito com o investimento no fortalecimento
do sistema de transporte público coletivo. Insistir na tese de que ambas as
coisas são incompatíveis só fortalece o discurso da solução da mobilidade via
automóveis, pois esse caminho evitaria o risco de contaminação, mesmo que
outras externalidades negativas sejam produzidas. Por enquanto, mesmo com um
cenário todo adverso, ainda não é o fim do transporte público.
* Wesley Ferro Nogueira é economista, compós-graduação em Gestão de Micros e Pequenas Empresas, em Marketing e GestãoPública; foi consultor da Unesco, do PNUD e da FAO no Governo Federal; foiTécnico de Complexidade Gerencial no Ministério do Desenvolvimento Social eCombate à Fome; atualmente é Secretário-Executivo do Instituto MDT e colaborador no Projeto “Pensar o TransportePúblico na Cidade Planejada para o Automóvel”.