por Terezinha Gonzaga
A democracia de uma sociedade se mede pelo grau de participação e decisão que a mulher possui
Atualmente assistimos a um fenômeno que é resultado direto do espaço
conquistado por mulheres dos movimentos feministas ao longo da história:
parte do patriarcado tem se lançado em ofensiva contra esses movimentos
através de mulheres das classes dominantes. Essas mulheres têm sido
instrumentalizadas e colocadas como laranjas com o objetivo de ocupar
espaços de poder no Estado, no legislativo, quanto no judiciário e no
executivo. A intenção desse desacreditado patriarcado é abrir um flanco
no Estado democrático de Direito para combater conquistas e políticas
públicas voltadas para mulheres, população negra, indígenas, LGBTQIs e
outras minorias. A audácia dessa elite patriarcal é tanta que chega a
falar em nome de todas as mulheres brasileiras. É necessário que
delimitemos o território para dizer a eles em alto e bom som que todas
as políticas sociais voltadas para as mulheres, neste país, foram
construídas por mulheres de todas as classes sociais defensoras dos
direitos humanos e da justiça socioambiental.
Como se sabe, não é de hoje que as mulheres precisam travar batalhas
para conquistar e garantir seus direitos. Um bom exemplo foi o I
Congresso da Mulher Paulista, realizado em 1979, com mais de 1000
mulheres em busca de políticas públicas e combate à desigualdade social e
de gênero – também neste período, outros estados brasileiros
organizaram seus congressos com os mesmos objetivos. Nas três décadas
seguintes foram realizados onze encontros nacionais feministas e três
conferências nacionais de políticas para as mulheres, onde foram
absorvidas as lutas pelos direitos das mulheres negras, indígenas e
lésbicas, reafirmada a luta pela creche e aprofundadas as propostas das
mulheres para a saúde, direitos sexuais e reprodutivos, com destaque
para descriminalização do aborto, salário igual para trabalho igual,
direito à moradia, terra para quem nela trabalha com financiamento
específico e luta contra a violência de gênero, doméstica e sexual.
Milhares de mulheres subscreveram estas propostas. O resultado
concreto foi a implantação, em 1985, no Estado de São Paulo da 1ª
Delegacia de Defesa da Mulher, única no mundo, que marcava o solo urbano
por um equipamento edificado específico de defesa da mulher em situação
de violência. Aquela iniciativa se transformou, hoje, em uma ampla rede
nacional reverenciada em todo o País. Também foram conquistas frutos
dessas lutas, a rede de creche como direito da criança – algo hoje
inquestionável –, a licença paternidade, a inserção na Constituição
Brasileira da conquista pela igualdade de direitos entre homens e
mulheres, o planejamento familiar como responsabilidade do casal e
legislações federais de proteção à mulher, como Lei Maria da Penha e a
Lei do Feminicídio.
Mas, a luta do movimento feminista não parou por ai. Nos dias de hoje
ele segue forte e enraizado na sociedade, principalmente nas periferias
aliadas com as universidades. As mulheres adentraram no ambiente
acadêmico e desenvolveram inúmeros estudos para aprofundar as propostas
do movimento feminista de políticas públicas para as bandeiras
reivindicadas, principalmente, por mulheres trabalhadoras. Essas
mulheres conquistaram em algumas empresas e instituições governamentais,
creches no local de trabalho, salário igual para trabalho igual – se
bem que em algumas categorias, as mulheres ainda recebem 70% dos
salários masculinos trabalhando na mesma função –, direitos sexuais e
reprodutivos, Programa Nacional de Assistência Integral à Saúde da
Mulher (PAISM), combate à violência de gênero e às causas de sua
discriminação, além de questionarem a educação sexista. Em todas as
disciplinas das universidades, abriram-se linhas de pesquisa com
exigências das mulheres na sociedade brasileira. Este movimento, como
diz o sociólogo Boaventura Santos, “revolucionou o paradigma da
sociologia” ao introduzir o conceito de gênero, uma categoria de análise
dos segmentos populacionais.
Cidades, mulheres e política públicas
As cidades tiveram um papel fundamental na formulação das primeiras
propostas de Conselhos de Direitos das Mulheres, Delegacias de Defesa da
Mulher e Secretarias de Estado dos Direitos das mulheres. Algumas
cidades elegeram prefeitas comprometidas com estas propostas e,
atualmente, uma governadora. Essas políticas públicas proporcionaram,
inclusive, o surgimento de uma Secretaria Nacional com status de
ministério.
Atualmente assiste-se a um verdadeiro descalabro de desmonte das
políticas públicas voltadas para as mulheres. Um bom exemplo é a atual
Ministra da Mulher, Damares Alves, que tem agido na contramão dos
direitos das mulheres e dos direitos humanos. Os movimentos retrógrados,
contrários a essas políticas públicas de apoio às mulheres, chegaram ao
cúmulo de, para atacar o movimento feminista, cooptar uma advogada
feminista para defender um suposto violador de uma mulher. O objetivo do
patriarcado é nítido: dividir os movimentos feministas e desestimular
as mulheres que se sintam violadas a denunciar seus agressores, o que
fortalece ainda mais a cultura do estupro.
Nitidamente o desespero tem atacado o patriarcado, pois sabem que o
movimento internacional de mulheres questiona a estrutura de um sistema
que as utiliza como fonte de lucro na indústria capitalista. Eles sabem
que as mulheres são a maioria da população mundial e que desempenham
funções fundamentais para manter de pé essa estrutura espoliadora e
cruel, onde o capital é deus. O patriarcado se incomoda, e muito, porque
o movimento feminista será 99% de toda a população feminina na
sociedade em pouco tempo e porque os homens que compõem parte dos 99% da
sociedade masculina não se beneficiam desta exploração descomunal. Com
certeza sabem que estes homens excluídos serão aliados das feministas na
luta pela desconstrução desta estrutura de dominação e, por isso,
investem na divisão do movimento.
Eles tentam, tentam e vão tentando desconstruir todas as
possibilidades de continuidade do processo de 45 anos de luta contínua
pela libertação das mulheres, mas não conseguirão. Eles não têm
propostas para resolver as condições objetivas de vida das mulheres,
pois, para isto, há a necessidade de recursos financeiros do Estado para
as políticas públicas, o que é totalmente contrário aos seus dogmas
neoliberais. Todos os serviços localizados principalmente nas cidades –
mas que também atendem as mulheres do campo – estão sendo desmontados.
Os serviços públicos de saúde, educação, habitação, proteção do meio
ambiente estão sendo extintos – aumentando ainda mais o desemprego –, o
que tem prejudicado diretamente as mulheres, uma vez que estas
desempenham papeis fundamentais para o funcionamento da sociedade. As
mulheres, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), são
responsáveis por 2/3 do trabalho na sociedade. Elas estão nas creches,
na educação, nos serviços de saúde, na limpeza e em praticamente 100% do
trabalho de cuidados de filhas/os, idosas/os e acamadas/os – sem contar
o trabalho doméstico que é feito totalmente de graça. Sem esses
trabalhos, a sociedade não funcionaria, o que demonstra a papel
fundamental da mulheres, mesmo assim, são elas que recebem os menores
salários – as mulheres negras recebem ainda menos.
As mulheres em luta contra o desmonte do Estado
Um exemplo prático de como o patriarcado utiliza as mulheres para
seus próprios fins é o caso do questionário do IBGE. A presidente do
instituto, Susana Cordeiro Guerra, uma seguidora fiel das orientações de
Paulo Guedes, Ministro da Economia, apresentou uma proposta de Censo
2020 que vai aniquilar as possibilidades de estudos da população
brasileira e da situação da mulher que aqui tratamos. A proposta
aprovada reduz de 112 para 76 o número de perguntas do questionário
completo que é aplicado em 10% dos domicílios, e de 34 para 25 as
perguntas do questionário básico, aplicado aos restantes. Esta proposta é
um disparate, pois são através das análises com o cruzamento dos dados
de renda, classe social (renda), caracterização das habitações e
escolaridade contidos nos setores censitários dos censos do IBGE e sua
espacialização que foi possível perceber as condições das mulheres
negras analfabetas moradoras nas piores localizações dentro das favelas.
Graças a esses dados, foi possível concluir, por exemplo, que 37% das
mulheres chefiam famílias no centro de São Paulo. Esses estudos são
fundamentais para entender o perfil das mulheres brasileiras e, assim,
traçarmos políticas públicas adequadas para solucionar os problemas que
as afligem. Também foram os dados do IBGE que possibilitaram que
percebêssemos que as mulheres brasileiras recebem 70% a menos dos
salários em relação aos homens, mesmo executando as mesmas funções.
As inúmeras entidades, coletivos, grupos de mulheres organizadas em
ruas, bairros, municípios e estados por todo País, além das articuladas
internacionalmente – que são mais de três mil pelo Brasil – também
cerram fileiras em defesa da educação pública e gratuita e do sistema de
seguridade solidária. A atual proposta de reforma da previdência,
proposta por Paulo Guedes, destrói as possibilidades das mulheres –
principalmente das classes populares – se aposentarem. Essas mulheres
reforçam a luta por ações antirracistas, pelo direito a diversidade
sexual, pelos direitos sexuais e reprodutivos, a descriminalização e
legalização do aborto e contra as violências de gênero, doméstica e
sexual.
Recuperar a memória histórica das mulheres, com o intuito de reforçar
suas lutas nas cidades brasileiras e no campo, é mais do que necessário
num momento em que as forças conservadoras elegem o feminismo como um
alvo constante. O patriarcado está em pé de guerra com o movimento
feminista, porque sabe que, além deste movimento não ser hierárquico, é
dirigido coletivamente pelas mulheres, contrariando a lógica vigente há
tantos anos no País.
As mulheres na nossa história
Podemos considerar que o movimento feminista desdobrou-se em inúmeros
feminismos dentro do processo histórico. Porém, todos têm pontos em
comum, como questionar a superestrutura do capitalismo e seus
micropoderes e questionar profundamente a origem das opressões de gênero
e raça vividas pelas mulheres negras, brancas, indígenas, amarelas.
Essa unicidade não é à toa e se deve, principalmente, ao fato de ser um
movimento cunhado nas condições objetivas das contradições e conflitos
entre classes sociais, gênero e raça.
Em todo o nosso processo histórico, as mulheres deste país – e do
mundo –, estiveram firmes na luta pela paz e a justiça. Podemos citar
alguns episódios brasileiros, a começar pelo destaque – ainda que
lembrado tardiamente na nossa história – de Dandara no Quilombo de
Palmares, pela participação na luta pelo abolicionismo de Chiquinha
Gonzaga – junto a outras mulheres – no final do século XIX e pela luta
pelo direito à educação das mulheres pela primeira feminista, Nisia
Floresta. A participação das mulheres na luta por direitos é vasta e
transpassa os séculos. No início do século XX, as mulheres ocuparam as
ruas das cidades brasileiras e foram determinantes nas greves operárias
em 1917 e na defesa do Sufrágio Universal, legalizado em 1932. Ainda na
década de 1930, Patrícia Rehder Galvão, a Pagu, uma militante comunista,
foi presa 23 vezes e morreu muito jovem de tuberculose consequência das
sequelas das prisões e torturas, lutando em defesa da classe operária.
Igualmente emblemática foi o processo, a prisão e o assassinato de Olga
Benário na Coluna Prestes, em 1935. Na segunda metade deste mesmo
século, as mulheres continuaram suas lutas e estiveram presentes na
redemocratização do Brasil, marcando fortemente as ruas ao resistirem à
implantação da ditadura militar. Mais de meio século depois, 55 destas
mulheres ainda são consideradas desaparecidas políticas.
Também foram as mulheres as primeiras a ocuparem as ruas na década de
1970, quando saíram com o Movimento contra o Custo de Vida, em 1972,
que se transformou num amplo movimento advindo das periferias e que
passou a ser denominado movimento contra a carestia de vida. Em 1975, as
mulheres lançaram o Movimento Feminino pela Anistia Geral e Irrestrita
e, ainda em 1975, comemoraram nas ruas o 8 de Março, já com todas as
bandeiras que até hoje estão erguidas e perambulam pelo país e pelo
continente. O movimento feminista foi o único movimento social que fez
uma manifestação nacional em Brasília em defesa das eleições diretas com
o lema “As mulheres brasileiras pelas Diretas Já!”. Em 1987, as
mulheres feministas lançaram um manifesto por um capítulo dos direitos
das mulheres na Constituinte e, em 1988, participaram diuturnamente no
“Lobby do Baton” para pressionar os constituintes do Congresso Nacional
com suas propostas aliadas à maior bancada de deputadas constituintes
mulheres da história do Brasil.
A democracia de uma sociedade se mede pelo grau de participação e
decisão que a mulher possui nesta. Nossas mulheres têm feito sua parte
durante a história. Não serão movimentos retrógrados que impedirão que
as conquistas continuem a acontecer.
Fonte: Carta Capital