Artigo I A proposta de novo marco regulatório para o saneamento: um retrocesso no caminho da universalização do acesso

Artigo I A proposta de novo marco regulatório para o saneamento: um retrocesso no caminho da universalização do acesso

Neste artigo, Ana Lucia Britto, pesquisadora do Observatório das Metrópoles, discorre sobre o Projeto de Lei (PL) nº 3261/2019 que altera o marco legal do saneamento básico e amplia a participação do setor privado na provisão de serviço. Segundo a pesquisadora, o PL representa um retrocesso, pois os argumentos utilizados não sustentam os objetivos de redução do déficit em saneamento e universalização do serviço. Confira!

Por Ana Lucia Britto¹

Uma das mazelas do país é ausência de acesso ao saneamento básico,
que atinge de forma mais grave os mais pobres, moradores de favelas ou
periferias metropolitanas, e de áreas rurais. No contexto atual,  com a
proposta de mudança no marco regulatório do setor, a perspectiva de
atender a população mais vulnerável torna-se cada vez mais distante. O
plenário do Senado aprovou, no dia 6 de junho o Projeto de Lei (PL) 3261/2019, de autoria do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), que também era relator da Medida Provisória (MP) 868/2018 encaminhada
no apagar da luzes do governo Temer, para alterar o marco legal do
saneamento básico (Lei 11.445/2007.) A proposta vai agora para discussão
na Câmara dos Deputados.

A pressão de movimentos sociais, como a Federação Nacional dos
Urbanitário (FNU) e o Observatório Nacional do Direito à Água e ao
Saneamento (ONDAS), e de entidades que representam os prestadores
públicos do setor, como a Associação Nacional dos Serviços Municipais de
Saneamento (ASSEAME) e a Associação Brasileira das Empresas Estaduais
de Saneamento (AESBE), fizeram com que a MP não fosse levada à votação
em plenário, perdendo sua vigência no dia 03 de junho. Contudo, os interesses privados se rearticularam encaminhando rapidamente o projeto de lei em questão.

As mudanças introduzidas visam, sobretudo, a ampliação da
participação no setor. Para isso o PL extingue os  contratos de
programa, que possibilitavam a dispensa de licitação para a prestação de
serviços públicos de forma associada entre dois ou mais entes da
federação. Rompe-se assim uma lógica de cooperação entre entes públicos,
apoiada na Constituição e na Lei de Consórcios. O PL prevê a
obrigatoriedade de chamamento público para verificar se há outros
interessados na concessão dos serviços. Os contratos de programa  estão
na base das relações entre os municípios e as Companhias Estaduais de
Saneamento (CESBs). Eles permitem que uma companhia atenda a vários
municípios dentro do seu estado, operando na lógica de subsídios
cruzados, onde os municípios que propiciam maior arrecadação em termos
tarifários podem subsidiar investimentos em municípios deficitários. É
evidente que os municípios mais rentáveis iriam atrair as empresas
privadas. As CESBs ficariam assim inviabilizadas. O fim do contrato de
programa inviabiliza também a cooperação entre municípios, com vistas à
prestação de serviços.

Em função das críticas dos governadores à MP, o PL introduziu a
possibilidade de criação de blocos de municípios para a prestação
regionalizada, “com vistas à geração de ganhos de escala”.
Entretanto, segundo o PL, os blocos seriam criados pelos estados. Ora,
constitucionalmente, os estados podem apenas criar, através de Lei
Complementar, Regiões Metropolitanas e Aglomerações Urbanas. O PL prevê
que no caso de blocos que abranjam o território fora das RMs, a
prestação regionalizada dependerá da adesão dos municípios. Parece
evidente que dificilmente os municípios que já possuem serviços
estruturados aceitarão participar de blocos com municípios que demandam
investimentos massivos para sua estruturação. No Rio de Janeiro, por
exemplo, o atual prefeito está buscando a justiça para que possa rever a
sua posição no entente metropolitano e privatizar o saneamento da AP4,  sem discutir com os outros municípios da RM.

Fica claro que a lei está alinhada com o projeto político neoliberal
iniciado no governo Temer e reforçado no atual governo. Ele passa
primeiramente pelo estrangulamento do setor público com a Emenda
Constitucional 95, que impõe o teto do gasto público por 20 anos,
levando a cortes profundos nos recursos para as áreas sociais incluindo a
de saneamento básico. Além disso, estruturou-se todo um conjunto de
regras que dificultam o acesso de prestadores públicos aos escassos
recursos federais, gerenciados pela Caixa e pelo BNDES. O governo
federal entende que os investimentos em saneamento serão alavancados
pela participação do setor privado.

A proposta de novo marco regulatório para o saneamento: um retrocesso no caminho da universalização do acesso

Observando o déficit em saneamento, verifica-se que ele se concentra
na população com baixa capacidade de pagamento de tarifas, em áreas onde
a viabilização do acesso demanda investimentos importantes. Existe uma clara contradição entre a lógica do lucro e o atendimento à população mais vulnerável.

Uma outra expectativa do governo é a de que o setor privado investirá
recursos próprios na universalização do acesso ao saneamento.
Observando, porém, os dados do Sistema Nacional de Informações em Saneamento (SNIS),
verifica-se que a grande maioria das empresas privadas que atuam hoje
no setor alavancam seus investimentos com recursos de fundos públicos
(FGTS e BNDES, por exemplo).

O governo também argumenta que as empresas privadas seriam mais
eficientes. Os dados do ranking dos melhores do setor², isto é os mais
eficientes, formulado com base no SNIS, não sustentam esse argumento.
Eles mostram que entre os 15 primeiros colocados existe apenas um
município atendido pelo setor privado. O argumento do governo é,
portanto, questionável.

No cenário internacional, mesmo com a onda neoliberalizante, muitos
países, como os Estados Unidos, mantém seus serviços majoritariamente
públicos. Cidades como Paris e Berlim retomaram uma gestão pública dos
serviços. Isso porque o modelo privado não trouxe os resultados
esperados: não trouxe capital novo, descumpriu contratos, aumentou
tarifas, excluiu os mais pobres e trouxe dificuldades para a regulação.
Não existe nenhum argumento sustentável de que o aumento da participação
privada promoverá a universalização do acesso no Brasil. As
empresas privadas vão investir recursos próprios, esperando o retorno de
longo prazo desse investimento, para atender a uma população com baixa
capacidade de pagamento?

É importante lembrar que a Lei 11.445/2007 foi regulamentada em 2010 e
que ela traz o quadro legal necessário para orientar os atores do
setor, em uma construção contínua da política pública, num setor em que
os investimentos têm longo prazo de maturação. Contudo, essa
continuidade não aconteceu. O governo Temer representou uma primeira ruptura; a segunda se dá agora com o PL 3261/2019.

Na nossa perspectiva, a Lei 11.445/2007 pode ser melhorada: ela pode
incluir o direito humano à água e ao saneamento como princípio;
assegurar um volume mínimo de água para os que não têm capacidade de
pagamento; estabelecer instrumentos para reforçar o controle social, o
planejamento e a capacidade técnica dos gestores públicos, aprimorar a
regulação. Esse, portanto, seria o caminho para promover serviços
adequados para todos.

¹ Ana Lucia Britto. Professora do PROURB. Pesquisadora do
Observatório das Metrópoles e Coordenadora de Projetos do Observatório
Nacional do Direito Humano à Água e ao Saneamento (ONDAS).

² O ranking considera os 100 maiores municípios do país e é
publicado pelo Instituto Trata Brasil – OCIP que tem no seu conselho
curador dois dos maiores grupos privados do setor no país (BRK Ambiental
e AEGEA)

Fonte: Observatório das Metrópoles

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