Não há nenhuma dúvida de que o momento é
extremamente grave e de que todos os esforços devem estar concentrados no
combate à propagação do coronavírus em todo o mundo, seja por parte dos governos,
estabelecendo ações enérgicas para o controle da pandemia, ou por parte da
população, que deve adotar com rigor as orientações estabelecidas pelas
autoridades sanitárias.
Entretanto, superado esse quadro extremamente
crítico, acredita-se que uma série de reflexões começará a ser feita no futuro
em todo o mundo a partir das experiências trazidas por essa pandemia e que
surpreendeu a todos pela velocidade de propagação e, principalmente, pela
exposição da fragilidade dos sistemas de proteção das populações ao redor do
mundo, ao mesmo tempo em que desnudou o despreparo de vários governos diante de
situações de crise e a demora em dar resposta aos problemas.
No Brasil, uma das primeiras reflexões deve se
dar no âmbito da discussão acerca dos equívocos das políticas econômicas
pautadas na lógica do mercado, que sempre privilegiaram o fluxo de capitais
para grupos privilegiados em detrimento de uma justa distribuição desses
recursos entre toda a sociedade, notadamente para a grande parcela que se
encontra em situação de completa vulnerabilidade e que, por isso mesmo, está
totalmente exposta a esses movimentos cíclicos de crises econômicas,
sanitárias, etc.
Entre esses equívocos pode ser listada a
instituição do novo regime fiscal por meio da Emenda Constitucional n° 95/2016,
que estabeleceu teto de gastos e reduziu o volume de investimentos em áreas
estratégicas, como saúde, educação, assistência social, meio ambiente e
ciência.
Com menos recursos aportados na saúde, era
inevitável que enfrentássemos problemas diante de uma crise devastadora como a
gerada com a pandemia mundial do coronavírus. No nosso caso específico, o
quadro só não está sendo mais complicado graças a existência no país do Sistema
Único de Saúde (SUS), que mesmo
precariamente ainda consegue estabelecer uma rede universal de proteção para a
população, ao contrário de outros países que só contam com serviços privados.
O SUS,
com sua presença em todos os municípios do país, com os seus programas e
estratégias de promoção da saúde e de combate à doença, como o Saúde da Família
e os Agentes Comunitários de Saúde, com os seus diversos profissionais
integralmente comprometidos com a saúde pública e com sua ação articulada entre
os diferentes entes governamentais, deve ser reconhecido como um dos mais
importantes instrumentos para o enfrentamento dessa crise.
Apesar dos vários problemas, como o
subfinanciamento, pois o aporte de recursos públicos é ainda menor que o gasto
privado com saúde e o desembolso da União se dá em percentual menor do que a participação
de Estados e Municípios, sem o SUS
a crise poderia ter tomado uma dimensão muito maior.
A necessidade de fortalecimento do SUS deve aparecer como uma das reflexões que serão
feitas após o controle dessa crise e esse debate deverá entrar na agenda de
toda a sociedade. O desafio será o de transformar essa constatação óbvia em
ações concretas, como o aporte de mais recursos no SUS
para que o Sistema possa estar qualificado para o enfrentamento de qualquer
crise e vidas possam ser preservadas, graças também ao comprometimento da
sociedade.
Nesse sentido, o direcionamento das atenções para
o fortalecimento das políticas públicas e do SUS não poderia se apresentar como
uma excelente oportunidade para avançarmos no debate da necessidade da
construção do Sistema Único de Mobilidade Urbana (SUM), proposta que o
Instituto MDT vem desenvolvendo e difundindo há dois anos?
O SUM que se organizaria a partir de elementos
estruturais presentes nos outros sistemas: comando único em cada esfera de
governo; participação e controle social; comissões intergestores com
atribuições definidas na construção da política de mobilidade; transferência de
recursos via fundo a fundo; cofinanciamento; órgão federal com poder e
estrutura para coordenação geral; investimento na qualificação de carreiras
para a formação de corpo técnico; etc.
Até pouco tempo atrás, com o processo acelerado
de desconstrução das políticas públicas, o SUM parecia uma utopia. No entanto,
a pandemia do coronavírus vai gerar uma série de reflexões e revisões em
condutas e processos e esse pode ser o momento que esperávamos para
introduzirmos a mobilidade urbana nesse debate, na perspectiva da construção de
cidades melhores, com ênfase no investimento no transporte público como
estruturador do desenvolvimento urbano, mas também como instrumento para a
promoção da segurança viária e a defesa do meio ambiente, e na mobilidade ativa
como mecanismo para a promoção da saúde e defesa do próprio SUS.
*Wesley Ferro Nogueira é economista, com pós-graduação em Gestão de Micros e Pequenas Empresas, em Marketing e Gestão Pública; foi consultor da UNESCO, do PNUD e da FAO no Governo Federal; foi Técnico de Complexidade Gerencial no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; atualmente é Secretário-Executivo do Instituto MDT e colaborador no Projeto “Pensar o Transporte Público na Cidade Planejada para o Automóvel”.