Por Wesley Ferro Nogueira*
A propósito da crise provocada por essa pandemia
e dos impactos produzidos dentro da sociedade, no mês passado o Instituto MDT publicou o seu Manifesto em defesa do
Transporte Público. Um pouco antes, dois outros documentos já tinham sido
apresentados por alguns de nossos associados: O Programa Transporte Social,
produzido em conjunto pela ANTP,
NTU e o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes de Mobilidade Urbana, e o
elaborado pela ANPTrilhos, ambos com a sugestão de medidas emergenciais para o
transporte público coletivo de passageiros.
Um dos elementos presentes nos três documentos é
a defesa incondicional do transporte público como serviço essencial e que,
exatamente por isso, deveria receber uma atenção diferenciada dos governos
nesse momento de isolamento social, quando a demanda caiu vertiginosamente e o
setor viu aprofundar o processo de degradação dos sistemas rodoviário e
metroferroviário.
Nos concentramos na construção de narrativas em
defesa do transporte público sob a ótica da oferta, mas ainda não demos a
devida atenção e a abordagem adequada sob a perspectiva dos usuários durante
essa crise sanitária, quando se teve a redução da mobilidade a partir do
estabelecimento de medidas restritivas, mas que também foi acompanhada pela
diminuição da oferta dos serviços de transporte, mesmo que atividades
consideradas como essenciais não tenham sofrido interrupção nesse período.
Para grande parte da população brasileira, o
transporte público é a única opção para garantir a realização dos seus
deslocamentos dentro do espaço urbano. Ou se utiliza o transporte público ou
não há outra alternativa para se acessar trabalho, serviços e os equipamentos
sociais localizados a distâncias que se apresentam inviáveis por intermédio de
modais ativos.
Se a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro é uma premissa importante para a sustentabilidade do sistema sob o viés da oferta do serviço, a garantia da sua disponibilização a esses segmentos mais vulneráveis da sociedade nesse momento de crise tem uma importância extrema para os usuários do transporte público, mas também para aquela imensa massa dos excluídos por absoluta incapacidade econômica de pagamento da tarifa.
Como garantir uma mobilidade segura para os
usuários do transporte público, sem risco de contágio ou contaminação, se a
oferta de ônibus e trens teve a frequência reduzida? Como assegurar o acesso
dos mais vulneráveis economicamente a unidades de saúde para o tratamento
adequado, em caso de emergência, por exemplo, se não há recursos disponíveis
nem mesmo para a sobrevivência?
Devemos fortalecer os nossos princípios
históricos em defesa do transporte público como instrumento efetivo de inclusão
social, reforçando que a sua universalidade pressupõe o direito de acesso a
toda a sociedade, mas que, sobretudo, sejam asseguradas as condições de
acessibilidade, principalmente, para os grupos que não são usuários do sistema
por se encontrarem em situação de pobreza ou extrema pobreza.
A crise deve ser uma oportunidade para
promovermos essa inclusão social através do transporte público, mesmo que os
últimos anos tenham registrado uma degradação dos sistemas em razão da
conjuntura econômica, com perda de passageiros e de receita. As medidas de
restrição à utilização do transporte público implementadas em razão do
coronavírus, garantindo o acesso somente aos trabalhadores de serviços
essenciais podem contribuir para conter a disseminação da contaminação, mas,
por outro lado, podem aprofundar as desigualdades sociais quando impedem o
acesso a parcelas expressivas da sociedade.
E aí não é preciso reinventar a roda para
encontrar possíveis soluções para esse momento de crise. Ressuscitar as ideias
de Keynes parece ser um tema consensual até mesmo entre os mais devotos
defensores do neoliberalismo, terreno onde nunca me inclui desde os tempos da
graduação em economia, diga-se a propósito.
O Estado passa a ter um papel determinante para a
retomada das atividades econòmicas e para a redução dos impactos que serão
causados por toda essa crise. No setor do transporte público, atividade cuja a
competência está sob a responsabilidade direta dos municípios, sugere-se a
adoção de algumas medidas imediatas por parte das prefeituras para garantir o
direito social de acesso da população mais vulnerável.
Em tempos de paralisação de várias atividades,
inclusive dentro do setor público, avalia-se como pertinente a possibilidade
das prefeituras realizarem o remanejamento/suplementação de dotações
orçamentárias de órgãos e ações que foram praticamente interrompidas durante a
crise da Covid-19, como esportes, cultura, turismo, custeio da máquina pública,
etc., para aplicação exclusiva na área de saúde e para garantir a oferta de uma
frota adequada para a mobilidade segura dos seus usuários, sem a redução da
frequência a níveis que possam expor o público a riscos desnecessários.
Mas, acima de tudo, que os recursos liberados de
outras áreas também possam ser utilizados para assegurar, nesse momento, a
incorporação do grande contingente de não usuários ao transporte público, essa
população mais vulnerável que se viu obrigada a se afastar desse modal por absoluta incapacidade de pagamento.
A ideia é de que as prefeituras pudessem fornecer, gratuitamente, cartões com
crédito dos seus respectivos sistemas de bilhetagem automática/eletrônica do
transporte público, para esses segmentos poderem utilizar nos seus
deslocamentos, a partir de processo criterioso de seleção do público,
obedecendo regras com total transparência e sob a chancela dos órgãos de
controle.
Não se trata de nenhuma proposta de desobediência
às orientações das autoridades sanitárias, que defendem o isolamento social
como condição para se evitar a mobilidade urbana. Estamos falando da criação de
condições reais para os mais vulneráveis terem a possibilidade de acesso ao
sistema de saúde em caso de necessidade, pois hoje não há nenhuma alternativa
para eles. Estamos falando é do transporte público como instrumento de inclusão
social. É nisso que devemos avançar.
*Wesley Ferro Nogueira é economista, com pós-graduação em Gestão de Micros e Pequenas Empresas, em Marketing e Gestão Pública; foi consultor da Unesco, do PNUD e da FAO no Governo Federal; foi Técnico de Complexidade Gerencial no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; atualmente é Secretário-Executivo do Instituto MDT e colaborador no Projeto “Pensar o Transporte Público na Cidade Planejada para o Automóvel”.
Foto: EBC