Por Hellen Guimarães
Publicado originalmente na revista Piauí
A segunda-feira começou agitada como tantas outras na casa de Luzinete Barros Bonfim, moradora de Camaçari, na Bahia. Era 11 de janeiro. Às cinco da manhã, a campainha tocou pela primeira vez, anunciando a chegada de uma menina de 3 anos de idade. Às sete horas, foi a vez de outro bebezinho. Há cerca de dois anos, as crianças passam o dia sob os cuidados de Bonfim – tanto a mãe da menina quanto o pai do menino são funcionários da fábrica da Ford e não têm com quem deixá-los quando saem, de manhã cedo. Dona de casa, a baiana de 52 anos trabalha como babá para complementar a renda de sua família. Todos os dias, cuida da menina até as três da tarde e, do menino, até as seis. Naquela segunda, quando a mãe da primeira criança foi buscá-la, Bonfim recebeu dela a notícia que mudaria tudo: a montadora de carros havia anunciado o fechamento de suas fábricas no Brasil, demitindo, com isso, a maior parte de seus 6 mil funcionários. Desses, 4,6 mil – o equivalente a 75% – trabalhavam na unidade de Camaçari. Entre eles, os pais das duas crianças que estavam, até aquele momento, sob a supervisão de Bonfim.
Não tardou para que
a babá fosse demitida, numa pequena amostra do efeito dominó que se impõe
quando uma grande empresa fecha as portas em uma cidade que gira em torno de sua
planta industrial. O que ocorreu em Camaçari, município de 300 mil habitantes,
se repetiu em Taubaté, em São Paulo, e também está previsto em Horizonte, no
Ceará, onde a última fábrica da montadora será fechada até o fim do ano.
Segundo estimativa do Departamento Intersindical de
Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o impacto da saída da Ford do
Brasil deve ser vinte vezes maior do que apontam os números oficiais.
Calcula-se que mais de 118 mil empregos podem ser varridos do mapa,
considerando a cadeia indireta de produção da empresa.
“Quando veio o
anúncio de que a fábrica iria fechar aqui na cidade, muitos pais de família
ficaram desempregados. Foi um baque para todos nós”, lamenta Bonfim. Embora
ainda tenha outras quatro crianças de quem cuidar, ela perdeu mais de um terço
de sua renda. “Era um dinheirinho a mais que entrava. O preço que eu cobro
varia de acordo com o horário, se a criança vai comer aqui ou não. As duas
crianças que eu perdi eram justamente da faixa mais cara. Agora, infelizmente,
os pais não têm como manter essa despesa.”
Quando a Ford
chegou em Camaçari, em 2001, Bonfim ainda não trabalhava como babá. Porém, em
pouco tempo a empresa começou a fazer parte de sua vida. De suas cinco irmãs,
duas foram contratadas para trabalhar na fábrica naquele mesmo ano. A dona de
casa só decidiu se lançar na nova carreira quando, em 2008, ela e sua família
se mudaram para o bairro de Ponto Certo, que fica a apenas 7 km da fábrica da
Ford. Numa vizinhança repleta de funcionários da montadora, ela largou o
emprego de copeira em um restaurante e se tornou babá. Desde então, essa vinha
sendo sua única renda própria, com a qual banca seus próprios gastos e contribui
para o INSS. Seu marido trabalha há anos no Polo Industrial de Camaçari,
complexo petroquímico fundado em 1978. O casal tem dois filhos.
Desde aquele 11 de
janeiro, Bonfim passou a notar um movimento menor de pessoas nas ruas. “A
cidade parece mais vazia, o comércio ficou meio caído. O clima é de muita
tristeza.” Ela deposita suas esperanças na possibilidade de que outra empresa
assuma as instalações da Ford, preservando assim parte dos empregos.
Recentemente, a imprensa noticiou que o Grupo Caoa,
principal revendedor da Ford no Brasil, avalia comprar a fábrica de Camaçari.
“Depois do Polo Industrial, a Ford era o maior ponto de geração de renda da
cidade. Estou torcendo para que outras empresas venham e consigam suprir essa
perda.”
Em outra parte de Camaçari, Kaíque Araújo da Silva, um professor de história de 25 anos, também sentiu o impacto imediato do anúncio da Ford. Na escola particular onde trabalha, na periferia da cidade, o mês de janeiro estava mais lento do que em anos anteriores, reflexo da pandemia. Mas o baque veio mesmo quando a notícia sobre o fechamento da fábrica começou a circular: de uma hora para outra, 40% das rematrículas que estavam em andamento foram canceladas. Pais de crianças que já estudavam na escola desistiram de renovar suas inscrições. Desde então, colegas de Silva foram demitidos, enquanto outros tiveram a carga horária reduzida. Para sobreviver, o colégio está cortando gastos onde pode.
“A situação já
estava difícil antes, mas agora o clima na escola ficou muito ruim. Sem aluno,
não tem demanda. Professores de outras escolas da cidade, sobretudo da rede
privada, também vão sofrer com isso, porque têm esse mesmo perfil de pais e
estudantes”, explica o jovem professor. Segundo ele, os colégios de Camaçari
são muito dependentes da renda gerada indiretamente pela Ford: quando os pais
de alunos não são funcionários diretos da montadora, eles trabalham em empresas
que prestam serviços a ela.
Silva conta que,
dias depois do comunicado da Ford, pediu um Uber para ir de casa até a escola,
onde tinha uma reunião marcada. Ao entrar no carro, descobriu que o motorista,
um homem de mais de 40 anos, era novato no aplicativo: até poucos dias antes,
ele dirigia os ônibus de uma empresa que fazia o transporte dos funcionários da
montadora. No dia seguinte ao anúncio de fechamento da Ford, ele deixou de
receber os itinerários que deveria cumprir. Imediatamente, baixou o Uber no
celular e começou a dirigir pela cidade.
“Ele estava bem
cabisbaixo. Era um senhor que, de repente, se viu sem perspectiva de emprego”,
relata Silva. “Eu também já noto uma mudança no movimento da cidade. Por aqui,
sempre foi muito comum ver os funcionários da Ford bebendo nos bares depois do
expediente. Agora não vemos mais isso. O impacto foi grande.”
Gleir Sousa, de 35 anos, estava num momento importante de sua vida. Funcionário da Ford desde 2012, o ferramenteiro tinha acabado de investir alto na construção de um imóvel próprio em Camaçari. Ele mora na cidade há doze anos, desde que se mudou de Betim, Minas Gerais. Deixou a cidade natal ao ser atraído para uma oportunidade de emprego em uma loja de autopeças, fornecedora direta da Ford. Casou na cidade baiana, teve um filho e não tinha planos de voltar para Minas tão cedo. Agora, não tem mais tanta certeza.
“Até ontem, eu
estava empregado numa montadora multinacional. Do nada, recebo uma mensagem da
Ford pelo WhatsApp dizendo que a empresa está fechada e eu estou desempregado.
Em breve, estarei na fila da Caixa Econômica”, desabafou Sousa em uma rede social,
na terça-feira, 12 de janeiro, dia seguinte ao anúncio feito pela Ford.
Segundo o
ferramenteiro, até então a empresa não tinha dado qualquer sinal de que
fecharia as portas. “Na véspera, a Ford transferiu o dia do feriado de São
Tomás de Cantuária, padroeiro da cidade: ficou definido que a gente trabalharia
na quinta-feira, feriado, e folgaria na segunda, para compensar. Ninguém
estranhou, porque eles tinham o costume de fazer isso.” Aproveitando o dia de
folga, Sousa foi acompanhar as obras de seu futuro imóvel. Fazia pouco tempo
que havia comprado uma grande quantidade de materiais de acabamento. Como
depois disso ele pegaria o turno da noite, foi para casa descansar durante a
tarde. “Cheguei, tomei um banho e, antes de dormir, resolvi olhar o celular. A
primeira mensagem que apareceu foi da minha sobrinha, lá de Minas, falando
sobre o fechamento da Ford. Ela me perguntou se aquilo era verdade. E eu não
sabia de nada.”
Quando Sousa abriu
a conversa que mantém com seus colegas de trabalho, não havia outro assunto:
fábrica fechada e produção suspensa. Em seguida, ligou para seu coordenador
direto para entender o que estava acontecendo. O chefe também não sabia. Quando
deu o horário em que deveria ir para a fábrica, Sousa perguntou ao supervisor
se deveria, afinal, sair de casa. Ouviu que era melhor ficar até que houvesse
uma posição oficial da empresa.
“Até hoje, nada. Só
o que nos enviaram foi um talk paper, ou seja, um aviso interno por
WhatsApp, dizendo que as atividades estavam suspensas por dois dias e que
receberíamos novas notícias em breve. Não recebemos”, relata o ferramenteiro.
Ele não vislumbra a possibilidade de achar um novo emprego em sua área de
atuação – ao menos não em Camaçari. “A ferramentaria é um trabalho aplicado em
lojas de autopeças, e por aqui esse tipo de vaga era oferecido pelas empresas
que forneciam para a Ford. Sem a montadora, todas elas vão fechar. Não vai ter
mais mercado. Estou sem saber o que fazer agora. Ainda dependo da Ford para
definir quando serei demitido, se já estou demitido, qual será o dia de acertar
essas contas, quando a demissão será homologada, e se haverá indenização.”
Agora, Sousa e sua
esposa consideram voltar para Minas. Antes disso, porém, ele precisa recuperar
o investimento que fez na casa própria. Segundo ele, o cenário de terra
arrasada deixado pela Ford não favorece o surgimento de compradores
interessados no imóvel.
“Infelizmente,
estamos nas mãos dos empresários”, reclama o ferramenteiro. “Eles declaram
falência, não pagam ninguém e, do nada, abrem empresa em outro lugar onde
esteja jorrando dinheiro. Depois, é só declarar falência novamente e abrir uma
filial em outro lugar, com financiamento do BNDES e incentivos fiscais.” Por
meio de nota, o presidente e CEO da Ford, Jim Farley, afirmou que o fim das
operações da empresa no Brasil faz parte de um conjunto de ações “muito
difíceis, mas necessárias, para a criação de um negócio saudável e
sustentável”. O texto credita a reestruturação ao fato de que “a pandemia de
Covid-19 amplia a persistente capacidade ociosa da indústria e a redução das
vendas, resultando em anos de perdas significativas”. A empresa garante ainda
que estreitará a colaboração com sindicatos para desenvolver um plano “justo e
equilibrado”, que minimize os efeitos do fim das atividades.