Por Wesley Ferro Nogueira*
Os sistemas de transporte público foram duramente atingidos
pela pandemia e isso já é do conhecimento de todos. O componente que diferencia
a forma como se deu o enfrentamento desse problema ao redor do mundo foi a
resposta dada por alguns governos, que aportaram os recursos financeiros que
garantiram a manutenção da operação dos sistemas, preservando empregos e permitindo
que parcela significativa da população pudesse realizar as suas viagens durante
a pandemia, principalmente os segmentos mais vulneráveis da sociedade.
No Brasil até houve um movimento nessa direção, por
intermédio de iniciativa do Congresso Nacional, que aprovou o Projeto de Lei
n.° 3364/2020, com a previsão de aporte de R$ 4 bilhões para socorro ao
transporte público, mas o veto presidencial à proposta tratou de eliminar as
esperanças de que os sistemas viessem a receber um subsídio mínimo que reduzisse
os impactos gerados com a crise que afetou assustadoramente o volume de
passageiros transportados por ônibus, barcas, trens e metrôs no país.
O veto do Governo Bolsonaro não surpreendeu. As ações
deliberadas e reiteradas dessa gestão de desprezo à pandemia e de desmonte de
políticas públicas construídas ao longo de vários anos já eram sinais evidentes
de que o transporte público e a mobilidade não teriam tratamento diferenciado.
Se não há consideração à vida, que é o nosso bem mais essencial, deveríamos
mesmo ter criado expectativas de que o Governo Federal asseguraria recursos
financeiros para socorro aos sistemas de transporte público?
Esse descompromisso com a mobilidade urbana é claramente
perceptível quando se investiga o orçamento do Ministério do Desenvolvimento
Regional (MDR), o órgão que tem a responsabilidade por essa área dentro do
Governo Federal. Em 2020 o Programa 2219 – Mobilidade Urbana contou com R$ 476
milhões alocados no orçamento da União para o financiamento de ações em todo
país, enquanto que neste ano este mesmo programa recebeu o aporte de apenas R$
142 milhões, ou seja, uma redução de 71% no período.
Sem muita expectativa em relação à União e com Estados e
Municípios com orçamentos integralmente comprometidos não dava para ficar
parado, era preciso reagir e, nesse sentido, é preciso reconhecer como positiva
a iniciativa promovida por algumas instituições que há pouco produziram em
conjunto a proposta de um novo marco legal para os sistemas de transporte
público, definido como um projeto de reestruturação do transporte público
urbano e de caráter urbano.
O projeto se baseia em três eixos principais, identificados
como os pilares do novo marco: regulação e contratos; financiamento e qualidade
e produtividade. A construção da proposta se baseia na promoção de ajustes e
inserções de novos itens em legislações, como a Política Nacional de Mobilidade
Urbana e o Estatuto da Cidade, em desoneração tributária sobre a atividade e
insumos utilizados na operação dos sistemas e o estabelecimento expresso de
fontes para o financiamento do transporte público.
Apesar de reconhecer o mérito da proposta apresentada, a
questão que quero trazer para o debate é o fato de que será que esse marco
legal já não existe? Será que é mesmo necessário se criar um novo marco legal
em vez de fortalecer o que já existe? Mesmo que existam algumas críticas em
relação à Lei n.° 12.587/2012, que instituiu a Política Nacional de Mobilidade
Urbana (PNMU), também é preciso reconhecer que essa norma introduziu uma série
de avanços e de instrumentos que poderiam ter dado uma perspectiva diferente
para o transporte público, por exemplo, desde que houvessem condições
pré-estabelecidas.
A PNMU trouxe todo um capítulo estabelecendo as diretrizes
para a regulação dos serviços de transporte público coletivo, onde se apontam
alguns indicativos importantes para a sua estruturação nas cidades, como: a
contribuição de beneficiários diretos e indiretos para o custeio da operação
dos serviços; a modicidade tarifária; a integração física, tarifária e
operacional intermodal e a fixação de parâmetros de qualidade na prestação do
serviço.
Também introduziu uma modelagem de remuneração das
operadoras baseada na separação entre a tarifa de remuneração/técnica e a
tarifa pública/usuário, um instituto que obriga gestores públicos a assumirem
compromisso mais efetivo com o financiamento do sistema e, ao mesmo tempo,
contribui para a manutenção das tarifas aos passageiros com maior proteção
contra as influências de variações de insumos e custos, vide a experiência de
Brasília/DF.
A Lei n.° 12.587/2012 também apontou as diretrizes para a
contratação dos serviços de transporte público via processo licitatório, além
de estabelecer uma série de direitos aos usuários de serviços de transporte público
coletivo, como a sua participação no planejamento, fiscalização e avaliação da
operação. Por fim, não menos importante, pelo contrário, destaca-se também o
detalhamento de vários instrumentos de gestão que poderiam ser utilizados por
prefeitos para a captação de recursos financeiros e o seu direcionamento para a
implementação de uma mobilidade urbana sustentável, como o pedágio urbano, a
aplicação de taxas sobre emissões de poluentes, a restrição ao tráfego do
transporte individual motorizado e a política de estacionamento.
Tive o cuidado de estudar todo o material produzido pelas
entidades para o tal marco legal, fiz várias anotações e aqui tomo a liberdade
de externar de forma respeitosa a preocupação em relação a alguns pontos. O
primeiro é que avalio que a superação dos problemas enfrentados pelo transporte
público e a mobilidade urbana não dependem primeiramente da necessidade de
revisões legislativas que possam assegurar as condições para o seu
financiamento, como está sendo proposto no projeto de reestruturação, elas são
necessárias, mas há uma etapa anterior a isso, pois novas legislações, por si
só, são insuficientes para a promoção de mudanças.
Avalio que o desafio prioritário é a criação de condições
prévias para que os instrumentos de gestão possam ser implementados, visando
gerar recursos financeiros, por exemplo, e para isso é essencial que se crie um
ambiente político favorável junto à sociedade e aos parlamentos municipais para
que os prefeitos possam estar confortáveis no momento de conceberem e
apresentarem projetos que irão promover mudanças que afetarão diretamente os
privilégios de usuários do transporte individual motorizado ou de outros
segmentos que possam ser alcançados pelas novas medidas.
Essa concertação é imprescindível e deve ser o primeiro
passo para que o transporte público e a mobilidade urbana alcancem um novo
patamar. A nossa missão nesse momento deve ser a de aproximação e de criação de
canais de comunicação direta com a sociedade (incluindo os usuários dos
sistemas de transporte, ativistas da mobilidade e academia) e com os
parlamentos municipais para a criação de uma ambiência favorável às mudanças
que vão atender ao interesse coletivo. Nesse sentido, a experiência recente
vivida pela prefeitura de Porto Alegre/RS deve servir de ensinamento para o
estabelecimento da nossa estratégia, uma vez que o projeto de mobilidade urbana
apresentado na gestão passada sofreu forte resistência dentro da sociedade e
também na câmara municipal, onde até mesmo a esquerda se posicionou contrária à
algumas medidas propostas.
Nesse sentido, também preocupa na proposta do marco legal o
fato da sociedade continuar a ser mantida sem papel relevante nesse debate, com
ênfase concentrada apenas em assegurar fontes expressas de financiamento, em
garantir isenções que representem redução de custos, em estabelecer segurança
jurídica nos contratos de concessão e nas relações com o poder público e no
afastamento de quaisquer riscos do negócio para os concessionários.
São propostas uma série de mudanças na Lei n.° 12.587/2012
e isso pode desfigurar a concepção global de mobilidade urbana introduzida por
esta norma, até mesmo com o risco dela passar a ser reconhecida apenas como um
manual para o financiamento dos sistemas de transporte público coletivo urbano.
Então, preocupa o fato de que, no momento em que a gente precisa mobilizar
potenciais apoiadores para criar um ambiente favorável à implementação de
medidas efetivas, as mudanças sugeridas pelo marco legal possam até mesmo
afastar os ativistas da mobilidade não motorizada, uma vez que uma das mudanças
sugeridas propõe a destinação de uma possível receita arrecadada com a cobrança
pelo uso da infraestrutura urbana apenas para o financiamento do subsídio
público da tarifa e não mais, também, para a implantação de infraestrutura ao
transporte público e aos modais ativos, como previsto no texto original da lei
(Artigo 23, Inciso III).
Essa mudança de configuração da Lei de Mobilidade também se
manifesta na proposta do marco legal quando são definidas atribuições distintas
para os entes federados, uma voltada para a mobilidade urbana e outra exclusiva
para o transporte público. Se questiona também a
necessidade da proposição da criação de dois fundos, o
FNTPC, para o financiamento dos custos e voltado para o barateamento das
tarifas, e o FNITU, para o investimento em infraestrutura de transportes
urbanos. A ideia que sempre defendemos é que no plano federal exista um Fundo
Nacional de Mobilidade Urbana para o financiamento das ações da área, sejam elas
de custeio ou de capital, sem separação entre um voltado para transporte
público e outro para os demais modais, senão corremos o risco de fragmentar o
tema.
Considerando que são as prefeituras quem estão mais próximas do cidadão e que sentem diretamente o impacto dos problemas, acredita-se que o enfrentamento da grave crise vivida pelo transporte público vai passar necessariamente por iniciativas empreendidas pelos gestores municipais, mesmo se reconhecendo o também grave quadro financeiro desses entes federados. Temos que mirar no futuro, mas soluções no curto prazo são imprescindíveis e, nesse sentido, é que temos que usar o nosso atual marco legal – a Lei n.° 12.587/2012, para criar um ambiente favorável para a proposição e a implementação de ações públicas que tenham o apoio de parcela representativa da sociedade, que garantam recursos extratarifários para o financiamento não só do transporte público, barateando tarifas e promovendo a inclusão social, mas que também possam construir cidades sustentáveis e melhores.
* Wesley Ferro Nogueira é economista,atualmente é Secretário Executivo do Instituto MDT, colabora no Projeto “Pensaro transporte público na cidade planejada para o automóvel” e há 5 anos que sededica ao estudo do tema da mobilidade urbana no DF.