Maria Sílvia Rossi
Considero o dia de hoje, dia da Mulher, um dia de muita reflexão. Sou Engenheira Agrônoma, formada pela Universidade de Brasília e meu registro profissional é do CRA-DF. Fiz o mestrado na UnB e o doutorado na Universidade Paris VII. Quando entrei na faculdade, aos 18 anos, fui surpreendida por uma grande comemoração – aquele era o ano em que mais mulheres foram aprovadas – éramos apenas cinco. Desde então, tenho ouvido muito falar da necessidade de superar barreiras que nascem da desigualdade de gênero que, infelizmente, estão fortemente presentes em todos os níveis, esferas e setores da nossa sociedade.
Há 45 anos, a ONU oficializou o dia 8 de março, como este Dia Internacional dedicado aos Direitos da Mulher. E todos os anos, faço a reflexão sobre o que temos para comemorar ? o que ainda falta alcançar para que a vida feminina seja isenta de violência e possa florescer?
É bem verdade que de lá para cá, muitos países têm melhorado seu quadro jurídico em busca por assegurar maiores direitos civis e políticos das Mulheres. De de forma mais urgente, implantando dispositivos legais para assegurar o direito à vida e a uma vida sem (ou com menos) violência. A Lei Maria da Penha talvez seja, no Brasil, o exemplo mais claro destes esforços. Meninas e Mulheres brasileiras dispõem hoje de um conjunto de direitos já consagrados pela Constituição Federal e o nosso quadro jurídico, mas nem sempre respeitado em todo nosso grande país – tais como direito a ter acesso à educação, a uma graduação e eventualmente se qualificar em pós graduação; exercer docência mais além da pré escola e do ensino fundamental; trabalhar fora do Lar; ter seus próprios documentos; ir e vir na rua, cidade, no país e inclusive viajar para fora do país; manejar seu próprio dinheiro, votar e ser votada; e assim por diante. Por incrível que pareça, estes são direitos muito básicos que ainda faltam para Mulheres em diversas partes do mundo. Em algumas partes do mundo, as sociedades ainda praticam seleção entre meninas e meninos, ao nascimento. Trata-se do descumprimento do direito mais básico que há: o direito à vida, e à integridade humana. Em várias sociedades, as mulheres são tratadas como mercadorias para negociações tribais e societais, com casamentos estabelecidos para crianças onde a figura do estupro existe como um direito do homem. A mutilação também faz parte do cotidiano feminino em vários países e regiões do mundo. Em muitos lugares do mundo, o direito à educação ainda é negado às mulheres – e este talvez seja, depois do direito à vida, o direito mais importante para o desenvolvimento humano e florescimento das potencialidades de vida. Ademais, no Brasil, desde 2018, passou a ser obrigatório o cumprimento de uma lei de 2009, na qual os partidos políticos devem lançar, ao menos 30% de candidaturas femininas para os cargos eletivos. Essa mudança possibilitou a eleição, naquele ano, um aumento de 52,6% da presença feminina na Câmara e Senado Federais, com 77 e 7 mulheres respectivamente, quando comparado ao ano de 2014. No total, atualmente, as mulheres ocupam cerca de 15% dos cargos eletivos destas casas, o que ainda significa uma baixa representatividade de gênero no Legislativo federal. Os números brasileiros mostram que mulheres ainda pouco votam em mulheres, elas ainda depositam no homem o voto para que as coisas mudem por meio daquele Provedor imaginário, cuja imagem foi-nos sistematicamente ensinada desde pequena. Então como uma mulher– ou seja, como você e eu, poderia mudar o mundo?
Todo(a)s nós sabemos que nunca foi simples buscar a equidade feminina. São muitos os obstáculos que nós, Mulheres, enfrentamos em nossa profissão, tais como o preconceito, a jornada dupla, o assédio. Apesar de serem a grande maioria da população (52%), as mulheres brasileiras ainda estão muito sub representadas no mercado de trabalho, no legislativo, no judiciário, na docência das universidades, na política em geral. Infelizmente, esta situação não é diferente para as áreas das Engenharias.
Os cursos de Engenharia existem há 229 anos no Brasil. Com a vinda da Família Real portuguesa ao Brasil, em 1810, Ensino Superior da Engenharia se concretizou no país. Mas somente em 1917, o primeiro diploma de Ensino Superior foi concedido a uma Engenheira – a engenheira civil Edwiges Maria Becker Hom’meil, formada na Escola Polythecnica do Distrito Federal, hoje Escola Politécnica da UFRJ, abrindo caminho para inúmeras novas engenheiras. Atualmente, somos apenas cerca de 19% do total de profissionais registrados no Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (CONFEA).
Assim como em toda sociedade brasileira, temos muito a fazer para ampliar cada vez mais a participação feminina nas Engenharias. Ainda que com este preconceito e discriminação, há grandes Engenheiras para nos inspirar, que se somam à primeira Engenheira Civil do Brasil, Edwiges Maria Becker Hom’meil, algumas das quais cito a seguir. Aïda Espíndola, Engenheira Química pela Universidade do Brasil, PhD pela Universidade de La Plata foi responsável pela exploração do primeiro poço de petróleo no Brasil. Veridiana Victoria Rossetti, primeira Engenheira Agrônoma do Estado de São Paulo, integrou a Comissão Internacional de Phytophthora e presidiu a Comissão Permanente de Cancro Citrico. Enedina Alves Marques, Engenheira Civil liderou diretamente obras e ficou conhecida por seus posicionamentos e liderança junto a engenheiros, técnicos, operários e peões. Ana Primavesi, Engenheira Agrônoma que primeiro analisou o solo como um ser vivo, foi referência no tema do manejo ecológico do solo, tendo recebido vários prêmios internacionais. Marília Chaves Peixoto, Engenheira Matemática formada pela Escola Politécnica da Universidade do Brasil, foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Ciências.
Um futuro mais justo e sustentável não acontecerá sem a equidade de gênero, ao respeito ao lugar de fala e de decisão. Mulheres precisam falar por Mulheres. A adesão brasileira à Agenda 2030, particularmente ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) número 5, que trata da igualdade de gênero e do empoderamento feminino colocou para todo(a)s nós o desafiador dever de corrigir este tipo de distorções e combater o machismo e o sexismo. Além do ODS-5, o ODS-11, relacionado a “tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis” me leva à reflexão: Mas a que tipo de cidade a Engenharia trabalhar para construir ? Será esta uma cidade inclusiva, justa, resiliente às mudanças climáticas e sustentável, que o século XXI demanda? Adicionalmente, o ODS-16 trata de “promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis”. Estamos falando, entre outros, de reduzir em um terço a taxa de feminicídio, por exemplo, o que é especialmente importante já que o Brasil é o 5º país em assassinato de mulheres. Estes são, portanto, alguns nortes importantes para nossa ação.
Assim, em que pese termos diversos avanços expressivos em relação ao gênero, tais como dispositivos legais para assegurar o direito à vida, à educação, ao exercício de uma profissão, ainda estamos muito longe de uma vida sem violência apenas por sermos Mulheres, e em boas condições para o exercício da profissão de Engenheiras. Fato sabido é, notadamente nas Engenharias, que a qualidade técnica de um(a) bom(a) profissional não decorre do seu sexo, gênero, raça ou classe social. Mas sim de suas habilidades para produzir soluções, seu repertório de competências para lidar com os grandes desafios que existem e vão existir durante toda a carreira como Engenheira(o)s. Todos sabemos disso. Então, a desigualdade de gênero e a discriminação feminina é essencialmente uma questão de poder em um mundo dominado por homens que se nutrem de uma cultura dominada pelo masculino.
Ocorre que as relações de poder sempre podem ser redefinidas, modificadas e reequilibradas. Discutamos então como e quando este machismo impacta e nos dificulta a profissão nos locais de trabalho e demais espaços em que atuamos. Apoiemos as colegas, levemos eventuais ocorrências aos comitês de ética, façamos uso dos recursos providos pelos CREA e Sindicato de Engenheiros e de nossos locais de trabalho. Não fiquemos caladas, coniventes e excluídas. Não precisamos aceitar os questionamentos sistemáticos e frequentes de nossas habilidades e conhecimentos quando passamos por processos seletivos com os mesmos requisitos dos demais servidores de empresas, tribunais, universidades, legislativo, governos e demais instituições. Não precisamos ter que demonstrar o tempo todo que sabemos Engenharia. Precisamos de espaços para ganhar confiança e poder demonstrar nossa competência. Precisamos de práticas inclusivas, de incentivos, de melhores condições e direitos trabalhistas adequados e justos, a exemplo da licença maternidade estendida, e apoio à amamentação porque para sermos Engenheiras não precisamos deixar de ser Filhas, Esposas e Mãe, postergando a maternidade. Ou será que precisamos ? Não esperemos os tais 135,6 anos para o mundo chegar a uma paridade de gênero, nos termos do Relatório de Desigualdade Econômica e Gênero de 2021, do Fórum Econômico Social. A paridade é possível. Na ONU, existe paridade de gênero nos cargos diretivos e em todos os cargos de alto nível.
Então sim, realmente, hoje é um dia intenso de reflexão. Acredito que é a partir dos pequenos atos cotidianos que novas culturas florescem, mais justas e solidárias. Não há dúvidas de que pensar, projetar, executar e criar soluções, resolvendo problemas é assunto de Mulheres nas Engenharias. É neste âmbito que encontramos formas de expressar nossa vontade de um mundo melhor. Trabalhemos, então, ativa e de forma inspirada para o justo reconhecimento do nosso valor, como Mulheres profissionais competentes, nas Engenharias, na Ciência, na Inovação, nas empresas, no mercado, nos governos, na política, na liderança e aonde haja tomada de decisões.
Brasília, 8 de março de 2022.