‘O que nos cabe sepultar’

‘O que nos cabe sepultar’

Da metade do século 19 à primeira grande Guerra Mundial no século passado, o avanço da primeira onda de globalização capitalista liderado pelo Reino Unido foi acompanhado por profundas transformações que permitiram ao Brasil melhorar a sua posição relativa na antiga Divisão Internacional do Trabalho (DIT). O mesmo, contudo, não se verifica no País desde a década de 1980 com a emergência da segunda onda de globalização capitalista.
A partir desta constatação, o presente artigo pretende contribuir com elementos que ajudem a entender os principais e atuais desafios expostos ao desenvolvimento brasileiro. Inicialmente cabe destacar que o conjunto de modificações pelo qual o País passou na virada para o século 20 foi impulsionado por maiorias políticas que reconfiguraram o status quo vigente na época.
As décadas de 1880 e 1930 são fundamentais para perceber o esforço consagrador das novas elites dirigentes sobre os rumos do País. No último quartel do século 19, por exemplo, a realização das reformas política (1881), laboral (1888), na forma de governo (1889) e constitucional (1891) favoreceu a transição da antiga economia mercantil para o capitalismo no Brasil.
Na seqüência, o empenho das novas elites entre as décadas de 1930 e 1970 foi central para viabilizar a transição da arcaica e longeva sociedade agrária para a urbana através do projeto de industrialização nacional. As diversas reformas efetuadas nas esferas da organização do Estado, da democratização política, do direito do trabalho, entre outras, mostraram ser funcionais e eficazes para o deslocamento da posição brasileira de mero exportador de commodities para a de 8ª economia industrial mais importante do mundo.
Isso se tornou possível como o pacto desenvolvimentista entre empresários nacionais e estrangeiros, trabalhadores e dirigentes do Estado. Mas quando estava por se consolidar enquanto sociedade urbana e industrial ao final da década de 1970, a fase do capitalismo regulado do segundo após-guerra foi superada pela emergência do neoliberalismo a partir dos países ricos.
Para piorar, o Brasil conviveu com a crise da dívida externa entre 1981 e 1983 e teve no encaminhamento econômico do último governo da ditadura militar (1964 – 1985) o estrangulamento decisivo da velha maioria política desenvolvimentista e a desconexão com o progresso da terceira Revolução Industrial. Neste contexto dos anos de 1980, a propulsão do Consenso de Washington liberou as forças da segunda onda de globalização, sendo acompanhada pela inflexão de baixa na posição relativa do Brasil na nova Divisão Internacional do Trabalho com a decadência da industrialização nacional.
Como em política não há vácuo, o espaço que passou a ser ocupado por acordos pontuais e não duradouros no ciclo político da Nova República iniciado em 1985 com o governo Sarney da Aliança Democrática sepultou o programa Esperança e Mudança do PMDB de constituição de nova elite reformadora do capitalismo brasileiro. Na era dos Fernandos (Collor de Mello e Henrique Cardoso), durante os anos de 1990, o que restava da burguesia industrial com capacidade de subordinar as demais frações dos capitais ao desenvolvimento nacional foi detonado para entregar de assalto à dominação financeira.
Na mesma medida, o aprofundamento sem estratégia da privatização e da internacionalização do parque produtivo nacional comprometeu uma possível integração ativa às cadeias globais de valor. Num passe de mágica, o Brasil ficou despreparado e sem grandes corporações transnacionais para competir na terra dos 500 gigantes que passaram a controlar o capitalismo global.
Complementarmente, o tripé da política macroeconômica instaurado após a crise do Plano Real em 1999 levou à exaustão os mecanismos de soberania nacional. De um lado, atrelou o controle da inflação à valorização cambial, o que a acelerou o processo de conversão dos capitalistas produtores em meros comerciantes importadores.
Mas para manter artificialmente valorizado o real como moeda nacional, as taxas internas de juros tornaram-se as mais altas do mundo. Com isso atraiu capital especulativo para fechar continuamente a conta das transferências para o exterior derivadas do irresponsável estímulo a importar, ao desviante turismo externo e aos demais e vergonhosos serviços financeiros.
De outro lado, o tripé macroeconômico aprisionou as finanças do Estado para forçar o sangrento superávit fiscal para pagar a conta do endividamento público gerado por elevadas e criminosas taxas de juros. Para isso, o ajuste fiscal permanente, por meio do corte de recursos como o investimento público, quando não a própria despesa social na forma de contingenciamentos e desvinculação de receitas da União (dru).
Mesmo na maior crise capitalista de dimensão global iniciada em 2008, o Brasil continuou a ser o campeão mundial das taxas de juros reais, enquanto a maioria dos países praticou juros próximos de zero, bem abaixo da inflação. Nada mais reflexo do continuísmo do tripé da política macroeconômica que levou a indústria a decair para somente 9% do Produto Interno Bruto nacional.
A reinvensão de uma nova maioria política nesta segunda metade da segunda década do século 21 torna-se fundamental pressupõe o suporte de um novo programa econômico alternativo ao tripé da austeridade da política macroeconômica implantado em 1999. Sem isso, a tendência à estagnação secular capitalista tem horizonte livre para crescer no Brasil, o que não seria um fato histórico inédito.
Conforme ensina Sérgio Buarque de Holanda, a história do progresso econômico no País tem seguido a forma de um rosário de milagres. Ou seja, a sucessão de ciclos de auge econômicos, que começou com o projeto de exploração colonial do pau-brasil, seguido do açúcar, do ouro e do café.
Nesta perspectiva, a industrialização nacional durante as décadas de 1930 e 1970 talvez pudesse ser também compreendida enquanto resposta possível ao fim da primeira onda de globalização capitalista. Já o movimento de desindustrialização presenciado desde a virada para o século 21 seria produto do contexto da segunda onda de globalização capitalista e, por isso mesmo, um fim de mais um ciclo econômico.
Por outro lado, cabe lembrar que Celso Furtado mostrou que entre um e outro ciclo econômico no Brasil houve uma longa fase de decadência nacional, como entre o fim do ciclo do ouro, no século 18, e a ascensão do ciclo do café no século 19. Se tomar como referência o período de 35 anos entre 1945 e 1980, o capitalismo industrial brasileiro cresceu a taxa média anual de quase 7% ao ano, enquanto nos 35 anos posteriores (1981 e 2016), o desempenho da economia brasileira rastejou nos 2% ao ano, em média.
Se mudar ainda o parâmetro para renda por habitante, constata-se que no primeiro período de tempo (1945 – 1980), o crescimento foi de quase 3,5% ao ano, em média, ao passo que no segundo (1981 – 2016) decaiu para 0,7% anualmente. Isto é sinal inegável de praticamente estagnação da renda per capita dos brasileiros.
O Brasil não deveria continuar a espera de um milagre, como se estivesse fazendo a sua parte na reza de um rosário. Pode ajudar a acomodar o primitivo das elites atuais, mas não vai levar a lugar algum, que não seja o que já se assiste nos últimos 35 anos.
O ciclo político da Nova República morreu, só falta sepultá-lo. O tripé da política macroeconômica segue tornando o País raquítico de crescimento, sem que o caso de anorexia que domina a economia nacional seja tratado.
As forças do atraso crescem defendendo o retorno ao século 19. Desejam desfazer os complexos sociais basilares da Constituição Federal de 1988 e acabar em definitivo com a Era Vargas por meio das reformas trabalhista e previdenciária.
A demanda de políticas à esquerda segue em alta no Brasil, embora a oferta seja quase inexistente. A nova classe trabalhadora de serviços e o subproletariado até a pouco emergente seguem intocáveis pelas forças de esquerda que parecem dirigir apenas olhando pelo retrovisor.
A nova e urgente inflexão brasileira dependerá do que a esquerda desejar fazer. Construir uma nova maioria significa escolher e empoderar inéditos atores políticos, para além dos existentes e concomitante com projeto de País que passe ao largo da continuidade do atual tripé da política macroeconômica de austeridade.
Para isso, o Brasil amplia horizontes e, tal como nas décadas de 1980 e 1930, consagraria a possibilidade de fundar nova maioria política e programa econômico e social alternativo frente à toada da segunda globalização capitalista.
* Márcio Pochmann é presidente da Fundação Perseu Abramo
Fonte: jornal Página 13
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